Ciclista de uma perna só, Gilvan descobriu a liberdade em cima de bike 10 anos depois
Uma década depois de sofrer um acidente e amputar a perna esquerda, Gilvan descobriu que a liberdade pode ser vivida em cima da bike

Ciclista de uma perna só, onde Gilvan chega de bike, todo mundo reconhece o atleta que se diz amador. O que era para ser um hobby foi além. Uma década depois de sofrer um acidente e amputar a perna esquerda, o autônomo Gilvan Pereira da Silva, de 38 anos, descobriu que a liberdade pode ser vivida em cima da “gata preta”.
Quem já pedalou por Campo Grande ou trilhas no interior do Estado conhece Gilvan de longe, e um pouco de sua história também. A amputação na perna esquerda aconteceu depois de um acidente de moto, no dia 20 de agosto de 2010, na Avenida Júlio de Castilho, próximo ao terminal, em Campo Grande.
“Cheguei na Santa Casa praticamente mais morto do que vivo”, recorda o autônomo. A recuperação foi rápida e depois de 11 dias internado, Gilvan teve alta. No entanto, entre amputar a perna e pedalar o intervalo foi bem maior, de quase nove anos.
“Tinha um carro financiado que perdi, aí precisei dar um jeito de me locomover. Conheci um amigo e começamos a fazer ciclismo. Eu dizia que não ia dar conta não, era uma aro 26, bike pesada. Comecei fazendo 7km, e fui aumentando”, narra.

A bicicleta seguinte, uma aro 29, veio de rifas e vaquinhas feitas entre o grupo de pedal que ele participa, o Canela de Fogo.
Até aí, pedalar era com prótese, e não tinha trilha que fosse difícil demais. “Fui aumentando a distância. Antes fazia 50km, passei a fazer 100km. E olha, se eu tivesse conhecido o ciclismo antes, teria participado desde sempre”, prega.
No fim deste mês, Gilvan vai completar dois anos de trilhas, a maior parte do tempo sem nem prótese. Isso porque com o tempo o ciclista percebeu que o suor atrapalhava a ponto dele terminar pedal com a prótese nas costas.
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Ciclista de uma perna
De bom humor, Gilvan relembra os comentários já ouvidos, principalmente porque sempre surpreende, em quilometragem e desempenho, quem apesar de ter as duas pernas não pedala metade do que ele faz.
“Olha, já aconteceu caso de amigo nosso fazer pedal junto e eu com uma perna só fui de boa e voltei e ele ter cãibra no caminho e não conseguir”, exemplifica.
Claro que o começo não foi tão simples quanto parece quando Gilvan protagoniza os vídeos gravados a partir dos carros de apoio, que sempre acompanham competições e trilhas. “No início foi complicado, mas hoje vejo uma subida e faço tranquilo. Mas nunca tinha feito trilha, fui ver que dava conta aos poucos e a galera foi me incentivando. Isso também conta muito”, diz.
Hoje a única adaptação da bicicleta é a ausência do pedal esquerdo, porque o ajuste maior mesmo parte do próprio ciclista. “Quando você não tem uma perna, sua cabeça trabalha em cima daquilo. Eu sei que não posso pender para o lado esquerdo, então eu trabalho com o corpo alinhado em cima da bike”, descreve.
Reaprender a se equilibrar é feito com tamanha maestria que até hoje, dois anos depois de começar a pedalar, Gilvan levou apenas um único tombo. “E de bobeira ainda, acredita?”.
Dia a dia
Quando não está sobre as duas rodas, Gilvan é comerciante autônomo e toma conta de uma pequena mercearia em frente de casa, no Bairro Nova Campo Grande. A rotina começa 5h da manhã, quando o ciclista vai para a academia no bairro vizinho, Jardim Aeroporto, volta, faz a limpeza da casa e do comércio.
À noite ele sempre tem um pedal de treino. Às terças, por exemplo, o ponto de saída é o tereré na Orla do aeroporto. Aos finais de semana, as pedaladas ganham intensidade, subidas e descidas e estradas de chão mesmo, com pedra e desafio.
Por enquanto Gilvan é o único amputado que pedala no grupo, e o que mais incentiva quem procura no esporte uma atividade para desestressar e melhorar a saúde. “Tem um amigo que começou agora, sete meses atrás teve um infarto, e ele fala: ‘se o Gilvan está pedalando, por que eu não vou?’ Ele já perdeu mais de 20kg. A gente ganha muito pedalando”, afirma.
Através de parcerias, o ciclista chegou na “gata preta”, a atual bicicleta na cor preta, que permite ao autônomo subir o caminho que for.
“Pra mim, pedalar é sensação de liberdade, porque ali você vê coisas, vê rio, cachoeira, poeira na cara”, elenca.
Competições
Longe de usar superação para definir sua participação no ciclismo, o comerciante tem na ponta da língua a réplica dada quando ouve “ah, mas você não fica reclamando…”
“Gente, ficar reclamando não vai trazer a minha perna de volta. Eu falo assim, uma deficiência ela te traz uma eficiência em algum ponto. Você atrai pessoas, para ter uma ideia eu comecei a competir ano passado e já consegui três medalhas e troféus.
Na Bonito Adventure, Gilvan ficou em segundo lugar na trilha de 56km. Em Piraputanga, subiu no terceiro lugar, depois de pedalar 50km, e no Morro do Ernesto foi ouro na competição de 30km.
“Eu aprendi que a gente tem que ser forte. Aceitar a deficiência, porque a partir disso você começa a se sentir bem. Foi um acidente, eu não pensei em sair de moto aquele dia e perder uma perna, mas aconteceu. E eu me adaptei a uma nova vida, várias portas se abriram para mim e hoje eu sou bem conhecido no ciclismo em Campo Grande”, pontua.
A entrevista finaliza com um convite para um pedal qualquer dia desses junto da dica de ouro: começar leve e ir aumentando a distância a medida em que o corpo vai se adaptando. Se um dia você pedalar ao lado de Gilvan, se prepare para ouvir ele ainda tirar onda com a sua cara.
“Eu falo que o único que chega inteiro ao final de uma trilha sou eu”, ri.