A Acompanhante Perfeita
Filme diverte com boa história de suspense, mas perde chance de discutir relacionamentos abusivos com mais profundidade
Existem duas maneiras de assistir à Acompanhante Perfeita.
A primeira é como um filme comercial que une dois dos atores mais promissores de Hollywood. Sophie Thatcher, 24 anos, destaque da série Yellowjackets (leia mais aqui – Yellowjackets: siga essa tendência no inverno) e de O Herege (leia mais aqui – O Herege e O Homem de Palha). E Jack Quaid – filho dos atores Denis Quaid e Meg Ryan – já conhecido pelo seu papel em Pânico e na excelente série da Prime Video, The Boys.
O filme tem uma boa trama, dose certa de humor, de suspense, de violência e tensão. É divertido e vai agradar não apenas aos fãs de terror.
Josh (Quaid) é homem vazio, ambicioso e sozinho que aluga uma robô criada pra ser, como diz o nome do filme, uma acompanhante perfeita. Suas memórias todas envolvem um amor incondicional ao dono.
Até a lembrança do encontro que causou a paixão à primeira vista é inserida via software pela fabricante. Num final de semana, o casal segue para a mansão de Sergei, no meio de uma região inóspita. O russo é o sugar daddy de uma das amigas de Josh.
No local, outro casal de amigos se une a eles para um fim de semana escolhido para que Iris, a robô acompanhante de Josh, fosse apresentada para o grupo.

Na verdade, tudo não passa de uma armação. Mais que isso, eu partiria para os spoilers. E como sabem, isso não vai acontecer.
O filme equilibra muito bem as cenas e nos leva a uma tensão crescente que vale o preço do ingresso. Ainda mais nesta semana que há promoção com ingressos a R$ 10.
Iris tem toda a programação no celular de Josh. Ele pode deixá-la mais ou menos inteligente só com um toque na tela. Pode transar com ela e, ao terminar, simplesmente, mandá-la dormir.
Uma escrava que é usada como empregada, cozinheira, companhia e tudo isso com uma devoção inacreditável. É aí que entra a segunda maneira de assistir a esse filme. E que poderia ter feito mais.
Acompanhante perfeita perde a chance de se aprofundar no tema e ser mais um caminho para ajudar no combate à violência doméstica e à dominação excessiva de homens abusivos.

É impossível não fazer um paralelo com homens que praticam a violência doméstica contra suas companheiras. Que imaginam as esposas e namoradas apenas como objetos que estão ali para servi-los de acordo com suas vontades.
E quando elas despertam, a força é imposta por meio de agressões. Uma das cenas do filme em que Josh agride Iris é chocante neste sentido.
Como jornalista, infelizmente, vejo quase que diariamente, na nossa redação, notícias com situações como essa. Mulheres precisando de medidas protetivas para lutar pela sua sobrevivência dentro de sua própria casa, na frente dos filhos.
Acompanhante perfeita traz o tema, mas de forma tímida. O cinema de terror, desde O Gabinete do Dr. Caligari, de 1920, é usado para, de forma exagerada, metafórica, retratar o contexto social e histórico da época da produção.
Césare, o sonâmbulo comandando pelo Caligari, era a representação do povo alemão que foi para a primeira guerra graças a líderes loucos.
Os slashers dos anos 70 e 80 condenavam a liberdade sexual da época ao criar assassinos que matavam implacavelmente os jovens que transavam nos campos de férias de verão, mas nunca conseguiam vencer a final girl, a mocinha virgem que, exemplo de moral, era mais forte que qualquer monstro.
Acompanhante perfeita poderia ter sido o marco deste tema, a exemplo do que foi A Substância e sua crítica voraz contra a indústria indiscriminada de procedimentos estéticos para atender a padrões machistas que exigem mulheres eternamente belas.
De qualquer forma, cada gota d´água importa quando precisamos mudar uma cultura enraizada há séculos. E, neste sentido, é bom ver que os roteiristas mesmo timidamente levantaram essa bandeira.
E vão além. Mostram os robôs como sendo mais humanos – no sentido da moral – que os próprios homens e mulheres de carne e osso.
Ninguém, em sã consciência, vai conseguir imaginar a robô de Sophie Thatcher como um pedaço de metal, chipes e sabe-se lá mais o que forma um ser biônico. Ela é uma mulher frágil, sonhadora, romântica.
Mas, como toda mulher vítima de violência, vai brigar por sua vida até exaurir a última força. O filme tem sido sucesso de público e de crítica. Mais de 90% de aprovação no site Rotten Tomatoes. A interpretação de Sophie, destacada em vários veículos especializados.
Mas, então, é exagero deste colunista exigir mais desse filme? Uma notícia que saiu hoje no portal de notícias g1 pode responder por mim.
O rapper Kanye West, marido da arquiteta Bianca Censori, que virou celebridade ao ir à cerimônia do Grammy na semana passada com um vestido totalmente transparente, usou sua rede social para dizer:
“Eu tenho domínio sobre minha esposa. Pessoas dizem que o look dela no tapete vermelho foi decisão dela. Sim, eu não faço ela fazer nada. Mas ela definitivamente não poderia fazer sem minha aprovação”.
Bom seria se a tecnologia avançada como está pudesse se tornar aliada nesta luta contra o machismo de posse.
Não programando mulheres para serem mais fortes ou mais inteligentes do que já são.
O problema não está nelas.
O update precisa ser feito, com urgência, no bom senso dos homens.