Esta sexta é 10

Vou pedir licença aos leitores, mas hoje não vou falar sobre terror. No entanto, o personagem desse texto, para mim, é sobrenatural. Vou falar sobre Pelé e como ele me ajudou a sair de uma enrascada fora do país. Em 2010, fui fazer a cobertura da equipe brasileira que participaria dos primeiros Jogos Olímpicos da […]

Vou pedir licença aos leitores, mas hoje não vou falar sobre terror. No entanto, o personagem desse texto, para mim, é sobrenatural. Vou falar sobre Pelé e como ele me ajudou a sair de uma enrascada fora do país. Em 2010, fui fazer a cobertura da equipe brasileira que participaria dos primeiros Jogos Olímpicos da Juventude, em Singapura.

O Comitê Olímpico Brasileiro decidiu fazer a aclimatação – a adaptação ao fuso horário – em Dubai. São 11 horas de diferença entre Brasil e Singapura. E sete horas dos Emirados Árabes. Fui, então, escalado para acompanhar a delegação por todo esse percurso. Fui com o grande amigo e excelente repórter cinematográfico Gilson Fredy. Desembarcamos em Dubai ainda de madrugada, por volta de cinco da manhã, após 14 horas de viagem de avião num vôo de carreira diferente daquele que levou os atletas e treinadores. No aeroporto, após pegarmos as bagagens, nos direcionamos para a saída. Ao passarmos pela alfândega, uma funcionária olhou pra nossa câmera e disse:

Vocês têm a licença pra entrar com esse equipamento no nosso país?

Eu traduzi o que ela disse para o Gilson. O inglês dele só lhe permitia dizer “Coke no ice, please” porque tinha problemas de garganta ao ingerir bebidas muito geladas. Ele me entregou a nota fiscal que acompanha os equipamentos em viagens e eu a entreguei, todo orgulhoso, para a mulher vestida com uma burca preta.
Ele disse que não queria a nota fiscal, mas sim uma autorização do governo dos emirados para que pudéssemos trabalhar como jornalistas estrangeiros ali.

Claro que não tínhamos. Perguntei a ela como conseguir o documento. Ela me indicou o escritório da alfândega a poucos passos dali. Fui até lá e conversei com a atendente.
Eu senti, em minha cabeça, todo o balde do gelo que Gilson não bebeu nas inúmeras viagens que fizemos. De uma vez só quando ela disse que havia um custo para a tal autorização:

Vai ficar 7.000 dólares.

Era impossível disponibilizar desse dinheiro. Minha verba, somada com a do colega e para todos os dias, inclusive a viagem pra Cingapura, não chegava nem perto da metade disso.
Perguntei, então, onde era a sede da agência de viagens que nos levou até Dubai. E fui informado que ficava na saída do aeroporto. Pedi ao Gilson que me aguardasse, que eu iria lá resolver a situação. E voltaria para encontra-lo. Ele sentou e só conseguiria sorrir se alguém perguntasse algo pra ele. A não ser que oferecessem algo pra beber. Aí viria o clássico:

Coke, no ice, please.

Passei a alfândega deixando mala, câmera, Gilson, tudo, pra trás. Procurei a sede da empresa e nada. Tentei comprar um chipe de celular pra ligar ao Brasil e tudo estava fechado no aeroporto. Voltei, então, à porta de saída para retornar à alfândega e fui barrado pelo segurança. Claro, eu não poderia voltar. Ninguém pode voltar ao deixar a área de desembarque. Expliquei toda a situação pro rapaz. Ele disse:

Sobe no segundo andar. Lá tem uma sala da polícia. Se eles te deixarem entrar, eu deixo.

E vou eu pelas escadas até o local.

Lá chegando, havia um único policial, uniformizado, com um belo bigodão e uma barriga testando a resistência dos botões da farda. Estava sentado numa cadeira, com os braços escorados na mesa pelos cotovelos. O homem olhava fixamente para uma televisão. Ouviu a minha história imóvel. Não virou o rosto nem quando olhou pra mim com olhos impacientes.

Por mim, sem problemas. Pode entrar.

Desci a escada aliviado. Ótimo, tudo resolvido. Até deparar com o segurança.

Não, ele tem de vir aqui dizer e dizer isso pra mim que autoriza sua entrada.

Abaixei a cabeça, respirei fundo e subi de novo as escadas.
Encontrei o policial na mesma posição. O programa devia ser muito bom porque o cara estava vidrado na tela.

Sem chance de eu sair daqui. – ele disse.

Tem como eu levar uma autorização por escrito do senhor?

Não. Na verdade, eu não tenho nada a ver com isso. Eu só garanto a segurança do aeroporto. Quem controla entrada e saída são eles mesmos.

Aí a situação ficou feia. Eu teria de esperar mais umas 3 horas para que alguma loja abrisse para eu tentar comprar o chipe. E não conseguia mais falar com o Gilson que estava dentro da sala da alfândega.
Voltei à porta de saída, argumentei mais uma vez com o segurança. Mais uma vez ouvi a negativa. Pedi, então, pra que chamasse o meu repórter cinematográfico para que eu lhe passasse uma posição sobre o que estava acontecendo.

Eu não posso sair daqui e não consigo pedir pra ninguém fazer isso. – ele disse.

O que fiz, então? Fiquei por ali, na frente da porta, igual às pessoas que aguardam passageiros desembarcarem nos aeroportos. Só não subi uma plaquinha com o nome “Gilson” porque eu não tinha papel nem caneta. Fiquei ali, exercitando a paciência na esperança de que Gilson saísse para esticar as pernas e me visse.

Entre 30 e 40 minutos depois, o segurança deixou o local. Entendi que era a troca de turno. Mas o substituto não veio. Não tive dúvidas. Agi mais pelo impulso porque a razão jamais deixaria. Eu corri o risco de ser preso em Dubai!!

Corri até a sala e falei com o Gilson.

O que vamos fazer?

Olhei pro balcão e vi umas atendentes. Ao nosso lado, outras pessoas vestidas em trajes típicos aguardavam. Fui até uma das funcionárias e, sem revelar que eu tinha acabado de infringir uma lei, pedi a ela ajuda para uma solução.

Compadecida pela nossa situação, ela pediu pra eu esperar um pouco. E pegou o telefone. Eu estava perto, mas inteligentemente, a mulher falou em árabe e aí eu não sabia se estava me ajudando ou me entregando.

Minutos depois aparece na porta um senhor fardado com tantas medalhas penduradas no uniforme que era impossível saber como ele aguentava o peso daqueles acessórios. Apesar de estarmos num local fechado, ele usava óculos de sol que deixavam aparecer apenas metade de um rosto bronzeado e moldado por um maxilar de ferro. Tinha um quepe que escondia sua testa.

Tive a certeza de que eu tinha sido flagrado pelas câmeras e já me imaginei numa daquelas prisões retratadas em programas televisivos como “As piores prisões do mundo”.

Com voz de quem não queria ser incomodado perguntou qual era o problema.

Eu comecei a dizer que éramos repórteres de uma emissora de televisão, que iríamos para os Jogos Olímpicos da Juventude, mas que, antes, a delegação do Brasil est…
Ele interrompeu na hora que ouviu o nome de nosso país.

Brasil? Pelé! Eu amo o Pelé! – tirou os óculos, abriu um sorriso e completou. – Eu vou liberar vocês.

Foi assim que Pelé me salvou da situação mais tensa de minha vida. Entramos nos Emirados Árabes com a câmera e sem pagar um tostão pela licença.

Naquele dia, eu, que sempre fui muito fã do rei do futebol, entendi a dimensão dele. Pelo simples fato de eu ser conterrâneo de Pelé eu ganhei a simpatia de um militar poderoso que nunca tinha me visto na vida.

É possível entender essas reações. Quem ama futebol sabe que Pelé é único. Os melhores jogadores do mundo o colocavam muito acima deles. E falavam isso, sem vergonha nenhuma. Os companheiros da época de Santos – que eu tive o prazer de entrevistar algumas vezes – sempre o trataram com a reverência de uma divindade dos gramados. E de um benfeitor fora deles. Não foram os relatos de que o melhor jogador do mundo dividia premiações e dava dinheiro pros companheiros.

Não vi Pelé jogar, mas com a bagagem dessas entrevistas e de documentários sobre o rei, sempre o admirei. Certo dia tive a oportunidade de cobrir uma coletiva de Pelé, em São Paulo. Realmente, me esforcei muito pra isso, mas não consigo lembrar qual era o assunto. Só lembro – e muito bem – da sensação que tive por estar na mesma sala que ele. Eu dizia:

Caramba, é o Pelé.

Já entrevistei Messi, Serguei Bubka, participei de coletiva com Roger Federer, já bati bola com Djalma Santos e conversei com tantos outros craques e várias modalidades. Com ninguém tive a mesma sensação que senti com Pelé.

Talvez uma gratidão. Não só por ter me salvado nos Emirados Árabes, mas por ter propiciado, com a bola, os movimentos mais fantásticos do futebol. Ele fez tudo o que um jogador pode fazer. E muito do que poucos conseguem fazer nesse esporte.

Lembro que sempre falávamos: “Eu quero estar de folga quando Pelé morrer”, uma alusão ao tamanho do trabalho que um jornalista teria numa situação dessas. E meu chefe sempre respondia: “É melhor você querer estar trabalhando quando isso acontecer, porque, com certeza, vai ter a folga cancelada pra ajudar na cobertura.”

Longe de Santos e da capital paulista, vi o velório de Pelé pela TV. Percebi que não queria estar lá não por perder a folga, mas por não ter de encarar a verdade: Pelé se foi.

Apesar da grande polêmica por Edson Arantes do Nascimento não ter reconhecido a filha que teve com uma empregada doméstica, Pelé precisa, sim, estar no topo do reconhecimento do povo brasileiro.

O gênio da fotografia, Sebastião Salgado, também conta uma história, muito mais perigosa que a minha, em que acabou salvo por Pelé. Ele cobria o massacre da guerra civil em Ruanda quando foi emboscado por um grupo de dissidentes. Eles achavam que Sebastião era francês, o que significava ser inimigo. Para escapar, Salgado mandou o intérprete dizer que ele era do Brasil, da terra de Pelé. Pronto. Passou pelo bloqueio.
Isso foi em 94. O meu episódio, 16 anos depois. E Pelé continua sendo referência para nosso país. Pra mim, indiscutivelmente, o maior nome de nosso país.

Quem tem dúvidas disso, pode assistir ao documentário Pelé (Pelé, 2021) que está disponível na Netflix. Em 1 hora e 48 minutos de duração, o programa consegue mostrar com muita clareza como o ser humano é capaz de ser frágil e, ao mesmo tempo, grandioso. A entrevista com o rei mostra um Edson já abatido, chegando à sala com a ajuda de um andador. O olhar parece cansado o tempo todo e acompanha um Pelé de guarda baixa, fazendo tabelinha com a sinceridade. Ali é possível ver um ser humano. Um homem que revela ter ficado sempre nervoso antes das partidas, que tinha medo de estar acabado para o futebol antes da copa de 70, que se deixou ser usado pela ditadura, que cometeu erros. Mas que os expõe e os reconhece.

A trajetória dele nas copas é mostrada de forma espetacular. O primeiro título mundial aos 17 anos como protagonista é surreal. E a volta por cima em 70, quando foi considerado por muitos – inclusive pelo técnico da seleção João Saldanha — acabado para o futebol, mostra o porquê Pelé virou sinônimo de “o melhor”.

Um homem de carne e osso, negro, pobre, nascido num país até então pouco conhecido, que alcançou a condição de estar, até agora, acima de qualquer praticante de esporte. Em todas as modalidades e em todas as eras.

Pelé já deixa saudades no general de Dubai, nos torcedores do Santos, no povo brasileiro, nos amantes do futebol, no Sebastião Salgado, nos terroristas de Ruanda, no Gilson e nesse escritor de histórias de monstros e fantasmas. Com certeza, Pelé, ficar sem você vai ser um terror.

Este conteúdo reflete, apenas, a opinião do colunista Toda Sexta é 13, e não configura o pensamento editorial do Primeira Página.

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