Não abra: o pote que encarcera o mal e escancara o preconceito

Filme do diretor Bishal Dutta apresenta demônio de origem indiana

A primeira fase do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), realizada no último domingo, trouxe, numa das inúmeras questões, a interpretação de trecho a música “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso.

Paula Lavigne, esposa do cantor e compositor, fez um vídeo perguntando a ele a resposta. Caetano, sempre genial, começa dizendo que seriam todas as alternativas. E depois, pressionado por ela a se colocar na mesma situação dos alunos, conseguiu chegar a duas respostas e não uma, como exigido.

Por que estou falando sobre isso?

Por causa da intepretação. Como nossos sentidos e nossa mente recebem uma obra. Seja uma música, seja uma pintura, um livro, um filme.

Nem sempre isso vai bater com aquilo que o autor pensou.

E isso tem muito a ver com repertório: o conjunto de experiências que acumulamos durante nossa vida.
E, sem dúvida, a sensibilidade, o inconsciente coletivo e tudo o mais de sobrenatural que une as pessoas do planeta ajudam nessa interpretação.

Com isso em mente, assisti a um dos filmes de terror mais esperados do ano.: Não Abra (It Lives Inside, EUA, 2023).

A primeira cena é realmente impactante: cores vermelhas – sinal de perigo eminente – a entrada de um quarto com a porta manchada de sangue, gritos desesperados, voz que parece recitar uma oração em língua desconhecida. Um corpo queimado, agonizante.

Um pote com uma substância escura jogado num canto.

É, a coisa não saiu nada boa pro infeliz caído ao chão.

Outras cores se apresentam na tela quando Samidha nos é apresentada. Ela é uma adolescente indiana-americana que vai se envolver com o tal pote, não tenham dúvidas disso.

Se eu tivesse a chance de conversar com o diretor Bishal Dutta – coautor do roteiro – sobre o que, exatamente, é o filme, eu colocaria que entendi ser uma metáfora ao pertencimento.

Samidha quer ser vista unicamente como norte-americana, desprezando suas origens, suas crenças.
E se afasta da melhor amiga, Tamira. Que passou a ser a esquisitona do colégio.

Ela almoça embaixo da arquibancada da quadra enquanto todos os alunos ficam em cima. Ela anda maltrapilha e sempre carrega o que? Sim, um pote com uma substância escura.

Uma hora pede ajuda a ex-amiga. Afinal, ambas vieram de ancestrais da mesma nacionalidade, mesma cultura. Elas se entenderiam. Precisam ficar juntas.

Samidha não pensa assim. Ela quer é permanecer o mais longe possível de suas raízes. Acha uma besteira enorme os rituais religiosos que os pais seguem à risca.

E, num momento de raiva, ela deixa clara essa ruptura ao quebrar o pote e jogar as crenças hindis no solo.

Não deveria ter feito isso.

A criatura, antes aprisionada, está livre para se alimentar de quem quiser.

Um demônio devorador de carne que come as vítimas aos poucos.

Um monstro que veio de outro país para matar norte-americanos. Hum… fiquei muito preocupado com as cenas que mostram perseguições aos nativos.

Em tempos de xenofobia acirrada pós-Trump, fiquei incomodado.

Quem se aproxima de Samidha acaba morto por algo que sua cultura levou para a América. Pesado isso. Traz um quê de ameaça. Traz um quê de medo de interpretação. De contra-ataque.

Mais uma vez convoco o repertório. Essa é a minha interpretação. Foi isso que o diretor pensou?

Não tenho dúvidas quanto ao retrato do preconceito e da busca do pertencimento.

Mas será que ele se tocou que, ao matar um lindo estudante apaixonado, ele acirraria ainda mais os ânimos de pessoas ignorantes que não conseguem aceitar outras culturas, outros povos?

Li que ele se inspirou numa história que o avô contava sobre uma vizinha que andava com um pote e conversava com ele. Quando o idoso perguntou o que havia dentro do frasco, ela o abriu e jogou o conteúdo no homem.

nao abra 2023

A partir disso, ele ficou assombrado.

Dutta é indiano e percorreu vários países até chegar em Hollywood impulsionado pelo trabalho eficiente em comerciais e curtas metragens de terror.

Ele também disse que Samidha é um pouco dele.

O cineasta também sofreu todos os preconceitos que um estrangeiro sofre.

Mesmo que o final caminhe para uma união entre os povos, para a aceitação da convivência e da própria cultura, o que pesa mais é, justamente, o que deveria ser evitado.

Teria ele descontado sua raiva alimentada pelo bullying em determinadas cenas ou apenas errado a mão. Muito mais na parte nociva – a cena do balanço, por exemplo – do que na moral da história.

Lançar este filme durante a ocorrência de uma guerra real gerada pela intolerância me parece um desrespeito à humanidade.

Mas posso estar errado.

Questão de repertório. Algo muito bom e, ao mesmo tempo, muito perigoso.

De repente, não foi nada disso que o filme mostrou. Foi o que eu entendi.

Como a pessoa que elaborou a pergunta para o Enem, achando que compreendera com clareza o significado da música de Caetano, sendo que o próprio autor revelou outra interpretação.

Por isso, fiz também uma análise desprovida de entrelinhas.

Como filme de terror apenas, Não Abra, é eficiente.

Tem a final girl, elemento que surgiu no final dos anos 70 e começo dos 80, mostrando que a mocinha virtuosa conseguia vencer os monstros que matavam os impuros. Tem um monstro bacana que crava dentes invisíveis nas vítimas. E cenas interessantes de tensão. A professora sendo perseguida é de tirar o fôlego.

Um filme nota 6. Muito abaixo da expectativa que se formou sobre ele. Mas acima de muita coisa ruim que chegou nas telas este ano.

Vale assistir? Claro!

É diversão certa.

Um filme que traz bons momentos.

E deixa espaço para uma continuação.

Espero que ela explore um ensinamento interessante, que ficou solto, quase despercebido no filme mum conselho da mãe de Samidha:

– Não assovie! – diz a ela à filha numa das primeiras cenas.

Assoviar chama os maus espíritos.
Fiquei esperando tanto esse assovio e as consequências que trariam.
Mas não veio.

Quem sabe, guardado. Não mais num recipiente, mas no corpo de alguém.
Se isso acontecer: fiu fiu pra Dutta!
Se fizer mais do mesmo, é a carreira dele que ficará guardada no pote do esquecimento.

Este conteúdo reflete, apenas, a opinião do colunista Toda Sexta é 13, e não configura o pensamento editorial do Primeira Página.

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