O Herege e O Homem de Palha
Estreia desta semana nos cinemas, O Herege (Heretic, 2024) tem agradado a crítica, ao ponto de conquistar incríveis 91% de aprovação no site Rotten Tomatoes.
Estreia desta semana nos cinemas, O Herege (Heretic, 2024) tem agradado a crítica, ao ponto de conquistar incríveis 91% de aprovação no site Rotten Tomatoes.
Na obra, Hugh Grant vive Mr. Reed, um homem totalmente cético e perigoso que recebe a visita de duas jovens missionárias.
O tema me fez lembrar de um dos melhores – senão o melhor – filmes de folk horror, subgênero do terror que usa elementos do folclore para causar medo.
Em 2019, Midsommar, o cultuado cineasta Ari Aster (Hereditário) coordenou cenas chocantes ao levar um grupo de amigos a uma festa de verão na longínqua Suécia. Leia-se ritual pagão com sacrifícios para deuses da colheita.
Muito antes disso – e quem não assistiu tem os streamings para corrigir essa falha – em 1974, o cinema nos brindou com O Homem de Palha (The Wicker Man).
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Um policial, o sargento Howie (Edward Woodward), recebe a incumbência de investigar o desaparecimento de uma criança numa pequena ilha da Escócia.
Howie descobre que os moradores locais são devotos de divindades da natureza e da fertilidade.
Um forte aspecto sexual pulsa na ilha.
Cristão, casto e noivo, o homem da lei precisa se livrar das mais adversas situações e tentações.
Principalmente de Willow (Britt Ekland), que protagoniza uma belíssima cena de sedução para atrair o policial a seu quarto e dar cabo não só das convicções do visitante, mas, principalmente, da investigação. A música Willow´s Song é tão legal que não saiu da minha cabeça por dias. Tive de baixá-la em uma de minhas listas num streaming de música.

Aliás, música é o que não falta no filme. Não chega a ser um musical. Mas esse componente sempre aparece para representar a cultura da ilha e o comportamento de seus moradores.
Quanto ao desaparecimento da menina, o detetive vai percebendo que ninguém parece se importar com o suposto crime. Nem mesmo a própria mãe dela.
A mulher chega a sugerir que o investigador fora enganado. Que a carta anônima que recebeu no departamento de polícia não se referia ao sumiço de um ser humano, mas sim, o de um coelho.
Há quem sugira que a menina se transformou num coelho depois de morta.
É claramente uma discussão sobre os limites da religião e o quanto podemos interferir nas crenças.
Para os habitantes, a devoção aos deuses é muito maior que qualquer outro sentimento.
Na escola, as crianças aprendem desde cedo o quanto essa cultura é crucial para a sobrevivência da ilha, famosa por produzir os melhores frutos do Reino Unido.
Na crença deles, isso só acontece porque são devotos sem limites.
E quando falo sem limites… é bom se preparar para o final.
O plot twist (reviravolta no roteiro) faz a gente roer as unhas das mãos e, se bobear, até a dos pés de tanta tensão!
A exemplo de O Herege, O Homem de Palha também tem 91% de aprovação da crítica no Rotten.
E se o mais novo tem Hugh Grant como cético, o setentão tem Cristopher Lee (o Drácula em pessoa, O Saruman em pessoa) como o líder espiritual da ilha, Lord Summerisle.
Em entrevistas, Lee, que precisou ser convencido a aceitar o papel, sempre afirmou que O Homem de Palha foi o melhor filme de sua rica filmografia.

E é possível ver o ator totalmente à vontade tanto desprovido de vaidades dançando com fantasias em desfiles folclóricos quanto ameaçador ao revelar o destino da menina desaparecida.
Tudo vale muito a pena.
Um filme equilibrado que tem momentos engraçados, lembrando até desenhos animados quando os moradores tentam despistar e enganar o policial, momentos tensos, de embate religioso e momentos de reflexão.
E uma delas, com certeza, é sobre fanatismo e suas consequências.
É sobre como, muitas vezes, o ser humano joga nos deuses a responsabilidade por suas atrocidades.
Tanto Herege quanto O Homem de Palha deixam claro que, quando invadimos a crença do outro, não temos a mínima ideia do que vamos encontrar.
E ter um filme, em 2024, falando sobre isso, só deixa clara uma triste convicção: a de que não avançamos quando o assunto é intolerância religiosa.
Já que algo que era discutido há mais de 50 anos continua tão presente em nossas vidas.