Pós-horror: a criação de um monstro
A década de 2010 trouxe uma série de filmes de terror que fugiam das características clássicas do gênero: sangue, psicopatas mascarados, fantasmas, demônios, zumbis. Mas eram filmes que causavam medo, perturbação. Obras que estavam mais para filmes de arte que, necessariamente, horror. Foi com esse apelo que A corrente do Mal (2014), A Bruxa (2015), Ao cair da noite (2017) Hereditário (2018), Midsommar (2020) chegaram aos cinemas, encantaram a crítica e, consequentemente, mexeram com a curiosidade dos estudiosos da sétima arte.
Um deles, o crítico norte-americano Steve Rose, ao analisar Ao Cair da Noite resolveu criar uma nova categoria para esses filmes: o pós- horror, que acabou virando um monstro pra assombrá-lo.
Apesar de ele relatar, em seu artigo, que o diretor do filme amou a definição, os amantes do terror massacraram o crítico. Ele diz que nunca foi tão ofendido em sua vida. Os comentários diziam, em suma, que ele criou o “pós-horror” para não dar o braço a torcer de quem um filme do gênero pode inovar e trazer muito mais do que apenas a repetição – deliciosa – de clichês.
Os subgêneros são criados para facilitar a escolha de um filme por parte do público. Já falamos aqui do slasher – que é o filme que tem um assassino, geralmente mascarado, matando geral. Tem o gore ou splatter, caracterizado por focar no maior número possível de litros de sangue jogados nos olhos vidrados das plateias. Fome Animal, do mesmo Peter Jackson — que trouxe à eternidade a adaptação de O Senhor dos Anéis – é sensacional!
A premissa é a seguinte: se eu não gosto de sangue e sei que se trata de um desses filmes, não vou assistir. Mas se eu gosto de filmes de casas mal-assombradas, por exemplo; tendo conhecimento de que uma obra é desse subgênero, vou consumi-la.
Agora, o pós-horror. Já é possível usar essa categorização? Ah! Hoje eu quero assistir a um filme de pós-horror. Que características esses filmes reúnem para que possamos identificá-los? O próprio Rose admitiu que não fechou um conceito sobre o tema. Inicialmente, atribuiu que “filmes inteligentes” de terror seriam classificados como pós-horror. Corra! (2017), de Jordan Peele – filmaço!, seria um grande exemplo disso.
O autor e pesquisador Oscar Nestarez, em um artigo publicado pela revista Galileu, trouxe o conceito de Rose. O crítico estadunidense afirma que “mais do que qualquer outra categoria, o horror é governado por códigos e normas consolidados por décadas e décadas de popularidade: “vampiros não têm reflexos; a ‘final girl’ vai vencer no final; os alertas do funcionário do posto de gasolina ou da velha e misteriosa indígena serão ignorados; o mal será finalmente derrotado, ou explicado, mas não de forma a descartar a possibilidade de uma sequência”. Essas normas funcionariam como lanternas em nossa jornada pelo desconhecido. O pós-horror nasce, afirma Rose, no momento em que certos realizadores resolvem desligar as lanternas. “O que acontece quando você ultrapassa essas regras de aço e vaga em meio à escuridão? Você pode encontrar algo ainda mais assustador. Ou pode encontrar algo que não é de modo algum assustador. É possível que aqui esteja emergindo um novo sub-gênero. Vamos chamá-lo de pós-horror.”
Crítico e pesquisador, Carlos Primati, não concorda com o tema. Para ele, é apenas uma “incapacidade de simplesmente associar tais obras ao vasto e quase inesgotável escopo do horror”.
A também pesquisadora, crítica e realizadora Beatriz Saldanha, diz que o pós-horror já nasceu problemático por transmitir uma ideia de superação e uma certa nobreza que os filmes de horror tradicionais não teriam. “Quando publicado, o artigo foi imediatamente rechaçado por pesquisadores e fãs do gênero. Pois basta ter um repertório básico para saber que filmes com as características que Rose aponta como novidades do cinema contemporâneo (pavor existencial, monstros em crise e uma abordagem mais sutil do horror) já existiam muitas décadas atrás.”
O professor Antonio Pedro de Souza, do Projeto Lumi, lembrou bem que a quebra de paradigmas em filmes de terror não é novidade dos cineastas da geração 2010. “No caso de “Psicose”, temos um elemento interessante que é o assassinato da então protagonista na primeira metade da história e, a partir daí, quase um filme novo, centrado no misterioso e frágil Norman Bates.”, disse ele no artigo.
E continua: ““O Bebê de Rosemary” mescla muito bem o terror psicológico com o terror sobrenatural. Jamais vemos o rosto do fruto do relacionamento entre a protagonista e o diabo, mas bastam as menções dos personagens para sentirmos pavor do enredo. Além disso, a paranoia crescente de Rosemary nos faz questionar o tempo todo se a mocinha está certa (e algo muito errado está acontecendo com seu marido e vizinhos) ou ela está apenas fora de seu juízo perfeito.”
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Quem viu o excelente A Bruxa, de Robert Eggers, vai encontrar semelhança com família da personagem de Anna Taylor-Joy. Seriam eles bruxos mesmo, com contato íntimo com o capiroto ou apenas vítima de fake news? Em 1630, fofoca da comunidade? Espere até as cenas finais. Credo em cruz! Não tem jump scares no filme, mas eu quase pulei da poltrona do cinema.
O pós-horror, ao que parece, não passa de uma armadilha dos estúdios para enfeitiçar um público fora do universo do terror. A revelação é do próprio Robert Eggers, em entrevista a Steve Rose, na época do lançamento de outro representante do novo sub-gênero: O Farol (2020), um filme em preto e branco com Robert Pattinson e William Dafoe.
“Eles (os produtores) sabiam que O Farol era mais um filme de arte do que qualquer outra coisa”, disse Eggers, mas também sabiam que poderiam “se apoiar” nos aspectos de terror para comercializá-lo, o que ajudou.
Ainda teremos muita discussão sobre o tema.
Um pós-doutor da Universidade de Indidana, David Church, lançou o livro acadêmico Post Horror: Art, Genre and Cultural Elevation. No estudo, ele diz que Steve Rose comete “uma das muitas tentativas falhas de nomear uma definição de filmes recentes”. “Horror inteligente” e “Horror Elevado” são termos usados pelo pesquisador.
Independentemente de como vamos chamá-los, o importante é que sejam feitos mais e mais filmes assustadores, repetindo as fórmulas ou surpreendendo o público.
Os estudiosos podem continuar se debruçando sobre definições. Para nós, fãs, pós-terror é quando continuamos a olhar pra trás, a trancar os armários e a checar embaixo da cama depois de um bom filme assustador.