Ballerina Farm e as Tradwives: o perigo da ilusão bem embalada
Sabe o que as “esposas tradicionais” têm em comum?
A rede social é um terreno fértil para todo tipo de ideia, as muito boas e as muito ruins. Tem público para tudo. O algoritmo entrega o conteúdo para quem se identifica e para quem detesta, porque o ódio engaja tanto quanto o amor. Neste celeiro de vídeos de dancinhas e trends, alguns perfis com milhões de seguidores se destacam, e a mensagem embalada ali alcança muita gente – inclusive gente que está a anos-luz daquela realidade.

Um, em especial, virou pauta na última semana: o “ballerina farm”, que mostra a vida de Hannah, uma jovem americana, loira, magra, mãe de 8 filhos e que retrata a rotina doméstica da dona de casa, que cozinha alimentos do zero com as crianças em volta e um bebê nos braços. Os vídeos dão a impressão de que colocaram uma câmera dentro de uma casa americana em 1950.
Explorando muito bem o ASMR (aqueles barulhos cadenciados que prendem a atenção de quem assiste) ela utiliza aparatos de cozinha de última geração, produtos bonitos, louça caríssima, o cabelo em penteados elaborados, as crianças limpas e com roupinhas muito bem cortadas. Hannah é ícone de uma corrente mundial chamada “Tradwives”, em tradução livre, “esposas tradicionais”. No Brasil, temos muitas personagens que fazem eco à narrativa dela, e elas têm uma coisa muito importante em comum: maridos ricos.
O marido de Hanna é bilionário, herdeiro de companhias aéreas. Antes de casar ela era bailaria profissional, da Juilliard, uma das mais conceituadas escolas do mundo, e morava em Nova Iorque. Ela se converteu à religião dele (são mórmons) e hoje eles moram em uma fazenda no interior. Ela tem 8,7 milhões de seguidores e seus vídeos viralizam a todo tempo, então, eles realmente ganham dinheiro com isso. O problema é que em uma entrevista recente, ela falou que está exausta por cuidar de 8 crianças e que gostaria de não ter interrompido sua carreira. Foi então que a internet descobriu que o marido, digamos, poderia estar restringindo a vida da moça.
Vejo aqui 2 questões que merecem atenção. A primeira é o dinheiro. A segunda é a soma de dependência financeira + dogma religioso, uma fórmula que prende mulheres em relacionamentos terríveis e as obriga a manter uma reluzente fachada de felicidade.
As mulheres, inclusive brasileiras, que pregam a beleza dessa vida de esposa submissa não são pobres. Em contrapartida, quem consome esse conteúdo e faz delas personalidades milionárias ganhando absurdos em publicidade, são mulheres que jamais conhecerão essa vida. Lá na periferia, a mulher casada com o cara que ganha 1 salário mínimo não acorda de madrugada para preparar a massa do pão e se maquiar, ela precisa trabalhar. Não há beleza na vida árida da mulher que mal tem direito ao descanso, que jamais vai abrir uma geladeira imensa lotada de comida ou assar bolos em fornos modernos nas tardes preguiçosas de quem não se preocupa com boleto.
Mas aí você pode questionar: ela está ali porque quer. Será?
É aqui que entra o cerco da religião. Em uma entrevista que viralizou, Hannah disse que a pedido do marido, pariu os filhos dentro de casa e uma única vez, quando ele estava viajando e ela foi levada ao hospital, tomou anestesia. Ela cozinha alimentos do zero porque não coloca os pés em supermercado. Se for usar queijo, precisa fazer o queijo, e tudo isso com 8 crianças correndo em volta. Mórmons americanos podem ser mais ou menos fundamentalistas, e o ponto não é esse, é o exemplo como um todo. Existem muitas correntes religiosas que pregam a submissão absoluta da mulher ao marido, mesmo que isso a faça sofrer.
Será que uma dona de casa cuidando de 8 crianças, mesmo sendo rica, não fica exausta? Ela disse na entrevista que sim, e eu não duvido da veracidade. Observe esse vídeo, preste atenção na expressão dela e na atmosfera de caos. Por mais que uma mulher deseje essa vida de casa cheia de crianças, não podemos negar que deve ser tremendamente cansativo. Qual a consequência disso a longo prazo?
E nessa história o que mais me dói: ela disse que não gostaria de ter largado sua carreira de bailarina. Será mesmo que a mãe de 8 crianças poderia, hipoteticamente, se desejasse, separar desse marido e retomar sua carreira? Será que ela continuaria viralizando quando não tivesse mais uma “família tradicional”? Ela viveria de quê? Como criaria essas crianças? A culpa pesaria? Ela sofreria por ter feito essa escolha? O mundo dos palcos e da disciplina receberia bem uma bailarina mãe de 8 crianças? Pois é. Acho que sabemos essa resposta.
Acima de tudo, me preocupa a disparidade de realidades quando se fala em consumo de conteúdo de influencers milionárias. A Mariazinha que mora lá na periferia do Brasil vai assistir um vídeo da Hannah e sonhar com a vida dela, com sua batedeira planetária e um marido lindo que chega sorridente para comer o pão quentinho assado numa tarde ensolarada de verão. Mas a realidade dela é trabalhar de 7h até 17h como diarista, voltar pra casa e fazer faxina, cuidando dos filhos, lavando roupa, cozinhando o que tem, e fazendo conta todo dia para o orçamento ser suficiente para o conserto do carro 2002 da família.
Na rede social, nada do que reluz é realmente ouro.
Comentários (4)
Nem um pouco maliciosa o tom desta reportagem, uns manipulam a informação com imagens outras na forma que escrevem.
E quanto aos comentários machistas e anti-família em busca de lacração?
Ser dona de casa é um crime pra quem não segue pelo caminho da carreira? Sugiro usar o seu talento e pesquisa para ajudar essas mulheres que você está se preocupando em ajudar para que não fiquem iludidas com as Redes sociais. Ajude-as a se organizarem financeiramente e como conseguirem renda extra, a fim de, se um dia quiserem, poderem também assar um bolo no meio da tarde.
Kkkkk só consigo rir desse tipo de conteúdo. E duvido muito que uma mulher que vive deliberadamente como o feminismo prega é de fato mais feliz que a Hannah. E outra, trás a versão completa dos fatos e não apenas o que considera conveniente para fundamentar sua teoria nefasta. Há um vídeo postado no canal da Hannah onde ela conta sua história e de sua família e o quanto é realizada com a vida em que escolheu viver.
Ser mãe e dona de casa sempre será cansativo. Mas, isso não significa que ela não seja feliz.Tudo que vale realmente tem valor e que a gente se dedica da trabalho e é cansativo.
Eu acredito que se ela quisesse voltar com a carreira ela poderia sim. Poderia existir diversas dificuldades? Sim. Poderia. Nem isso é certeza.
Mas, ela poderia sim voltar.
É importante que suas crenças limitantes não sejam parâmetro para todos. Pq o que vc está dizendo é que quando se é mãe não é possível retornar a ter uma carreira fora de casa.
Isso não é verdade. A vida é movimento, sempre vai ser possível recomeçar. Por mais difícil que isso possa parecer.