Jaqueline Naujorks

Coach red pill e romantização da misoginia: o mistério nada misterioso do cara do Campari

Não sei em que mundo esses caras vivem, mas certamente dominação feminina não é exatamente o que se vê numa sociedade patriarcal como a nossa, não é?

A narrativa red pill sempre me intrigou muito. Eles são 90% dos meus haters e todos os dias leio comentários raivosos escritos por meninos crescidos escondidos atrás de perfis falsos e que têm por hobby xingar mulheres na internet. Nunca dei maior importância para qualquer um deles, pelo contrário, sempre usei a tática de Cleópatra: utilizar o ódio dos homens para ganhar mais poder. Foi respondendo a esses comentários com toda a elegância que fiquei famosa no TikTok e consegui levar minha mensagem de empoderamento a milhões de mulheres. Obrigada, queridos!

coach red pill
‘Coach Campari’ ficou conhecido por falas misóginas e fez ameaças após virar piada na internet. (Foto: g1/Reprodução)

Voltando ao red pill: se você perdeu esse rolê, faço questão de te atualizar. O “movimento” red pill faz alusão ao filme Matrix (que, por sinal, eu ADORO!). Esses rapazes querem crer que “tomaram a pílula vermelha”, ou seja, a pílula da verdade, e, assim, se libertaram de uma suposta dominação feminina que é comum a todos os homens héteros. Não sei em que mundo esses caras vivem, mas certamente dominação feminina não é exatamente o que se vê numa sociedade patriarcal como a nossa, não é? Enfim. Lógica não é mesmo o forte deles.

Esses homens têm uma espécie de mentor. Um cara que vende cursos para preparar meninos nessa narrativa de “libertação das mulheres” e ganha uma grana com a insegurança de adultos que só precisavam de um bom tratamento psicológico. Ele viralizou com recortes em podcasts de falas misóginas, desqualificando mulheres, e, assim, ficou ainda mais famoso. O mais compartilhado é o trecho em que ele fala que se está bebendo Campari e uma mulher lhe oferece uma cerveja que ela está pagando. Se ele aceitar, estará aceitando a dominação feminina. Não faz o menor sentido, eu sei, mas acredite, ele virou um guru com isso. E você aí tentando o doutorado, hein, amigo? Pois é. Puxado…

Esse vídeo em especial desencadeou um movimento delicioso de acompanhar: mulheres com perfis fortes nas redes sociais começaram a criar sátiras sensacionais e, com muito deboche, escancararam o nível de absurdo contido nele. Um dos melhores foi da atriz Livia La Gatto, que brincou, inclusive, com a questão dele esnobar mulheres e desqualificá-las por estarem além da “idade ideal”, acima do peso, independentes demais e outras bobagens, estando bem longe de ser um galã.

Bruna Volpi, outra influencer com conteúdo feminista, puxou a capivara emocional do cara e surpreendeu um total de zero pessoas: o homem que ensina a odiar mulheres participou de um reality show de namoro no qual foi, pasme, descartado por uma incrível e belíssima cinquentona. Tá explicado! Mas ele não está só. Um homem adulto para odiar a todas com tanta força, ou foi rejeitado por uma mulher ou foi rejeitado pela própria mãe. Ou as duas coisas.

O ponto alto dessa nossa conversa vem agora. Você sabe o que ele fez com as autoras desses vídeos? Ameaçou essas mulheres. A Lívia, especificamente, ele ameaçou de morte. Disse que ela poderia “escolher entre processo ou bala”.

Excepcionalmente, hoje o vídeo desta coluna não será meu. Faço questão de compartilhar o vídeo que fez com que uma mulher fosse ameaçada de morte.

(Vídeo: @livialagatto/TikTok/Reprodução)

Sabe aquela frase de uma série famosa que diz “Homens têm medo que as mulheres riam deles, mulheres têm medo que homens as matem”? Esse caso é um ótimo resumo. O que faz um homem ameaçar de morte uma mulher que nem conhece unicamente porque ela debochou dele? É o mesmo princípio que faz chegar ao feminicídio. Se o homem é colocado na posição de alvo de chacota seja nas redes sociais, seja no bairro como o marido abandonado, na roda de amigos como o namorado da mulher desbocada, o corno, o careca, o impotente, o rejeitado, a reação dele é revidar pela força. As delegacias estão lotadas de denúncias com o mesmíssimo roteiro.

Livia fez boletim de ocorrência, como manda o rito da justiça, mas usou um recurso muito mais ágil para a proteção de mulheres ameaçadas por homens adorados por outros homens: a opinião pública. Ela usou a imprensa como deve ser usada, para levar a público o que alguém quer que seja abafado.

Vim aqui me solidarizar contigo, Livia. Eu também fui ameaçada e perseguida por um grupo bem específico de machistas nas redes sociais. Na época, procurei a justiça e encontrei portas fechadas para mulheres que não tinham vínculo com o agressor, assim como você e o cara do Campari. Indignada porque a lei não me protegia, também usei o recurso da imprensa, mas do lado de cá: escrevi 3 matérias que ajudaram na composição do que hoje chamamos de Lei do Stalking.  Deixei as evidências na mão de três colegas de minha inteira confiança, que se um dia eu quebrar uma unha, eles saberão o que fazer. O processo que movi segue parado, com a costumeira lentidão da justiça, e meu agressor segue fazendo outras vítimas nas redes sociais. Mas eu fiz como você. Agi como uma mulher ciente da missão de segurar essa porta pesada para que outras possam passar. Criei um canal nas redes sociais para fortalecer mulheres, que tem 780 mil seguidores, e ajudei a criar uma lei para proteger outras vítimas de perseguição. Você está encorajando muitas outras a fazer o mesmo e isso não tem preço.

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O cara do Campari logo será esquecido. Homens alquebrados encontrarão outro guru que diga o que eles querem ouvir. Outros haters virão, outras manas vão tomar a frente para denunciar, mas a mulher que aprende que gritar pode salvar outras vidas, essa nunca mais esquece o volume a que pode chegar sua própria voz.

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