Jaqueline Naujorks

De quem é a culpa pelo seu trauma?

Mania chata essa que o povo tem de culpar a vítima pelo mal sofrido

Dos (inúmeros) ranços que tenho trabalhando com redes sociais há anos, o que mais me tira do sério é o cara falar “Você é traumatizada”, como se fosse um xingamento. Ora, se você é traumatizada, é porque alguém traumatizou. Que culpa você tem disso?

Vou citar como exemplo a história que uma seguidora me contou. Por razões óbvias, não vou citar seu nome. Recomendo a você que se acomode confortavelmente, pegue seu chá de cidreira, seu floral, seu incenso, e venha comigo ler esse relato que tenho certeza, vai te parecer familiar. Você já ouviu algo assim em algum lugar.

melancolia
(Ilustração – reprodução/internet)

Ela casou jovem, com seus 20 anos. Namorava desde a adolescência o mesmo rapaz, confiava nele, inclusive para partilhar suas dores de uma infância difícil, com um pai violento. Pegou todas as suas economias e entregou ao noivo para reformar a casinha que já era dele, onde o casal iria morar. Casaram, e ela foi viver o sonho dos adultos. No primeiro mês, ele pediu que ela abandonasse o trabalho de recepcionista em uma oficina de caminhões, porque ficava muito enciumado. Ela atendeu, para não fazê-lo sofrer.

Como ela parou de trabalhar, ele começou a fazer hora extra. A moça entendia e jamais cobrava, culpada por precisar do dinheiro do marido. Já não fazia as unhas nas sextas-feiras, não gastava com produtos de cabelo, abandonou a academia, tudo para poupar seu companheiro de um gasto ainda maior. Meses se passaram, até que ela percebeu que estava com alguns sintomas estranhos, febre insistente, um desconforto, e procurou um posto de saúde. Após alguns exames, o diagnóstico. Dengue? Não. Sífilis.

Ela descobriu que seu marido não fazia hora extra nenhuma, ele era cliente assíduo de uma casa de meninas. Não estava gastando demais com a vida modesta do casal, estava gastando com programa. Não tinha futebol, não tinha encontro de homens da igreja, o “compromisso” dele era esse. Além das garotas da casa, ele tinha uma favorita, para a qual montou uma kitinete e exigia atendimento exclusivo, pois era muito ciumento.

Ao confrontar o marido, ele a culpou: disse que se descuidou, engordou, nunca mais fez a unha, não arrumava o cabelo. Passava o dia limpando casa e estava sempre respingada de comida, as mãos cheirando a alho ou água sanitária. Ele era homem, tinha desejos e preferências, e sua esposa não atendia mais ao seu gosto.

Muito magoada, ela pediu abrigo na casa dos pais, e encontrou uma porta fechada. “Filha minha não volta para casa largada”, disse o pai. A mãe chorou. Ela não tinha para onde ir.

Pediu abrigo na casa de uma prima, que já tinha vivido dor parecida. Juntou suas coisinhas sob a supervisão do agora ex-marido, que não deixou ela levar uma travessa sequer da casa. Saiu desse relacionamento sem emprego, sem teto, e pagando o tratamento de saúde para se livrar de uma doença venérea. Assim que saiu da casinha onde colocou suas economias, ele imediatamente entregou a kitinete da amante e levou a moça para morar com ele.

Muito magoada e vulnerável, ela conheceu um amigo da prima. Engatou um namoro. Em 2 meses ele começou a usar o trauma do ex para manipular a moça. Em 4 meses, ele bateu nela pela primeira vez. Lá vai ela para a delegacia da mulher registrar boletim de ocorrência e pedir medida protetiva. Se sentindo um fracasso, se entregou à tristeza, que virou uma depressão profunda.

Morando de favor na casa da prima, ela arrumou um emprego. Se aproximou de um colega de trabalho recém-separado. Em 3 meses eles estavam namorando, e como ele morava sozinho, convidou a moça para viverem juntos. Ela começou a perceber que estava perdendo a hora para o trabalho, muito sonolenta, com náuseas. Fez exames achando que estava grávida, e o resultado deu que estava drogada. Deixou um celular escondido num móvel do quarto, filmando. Descobriu que o namorado estava dopando-a para abusar dela e fazer transferências bancárias usando sua digital.

Fez denúncia na empresa, afinal, o cara era um criminoso. Demitiram os dois. Ele passou a persegui-la nas redes sociais. Lá vai ela para a delegacia fazer um novo boletim de ocorrência. Ela estava novamente sem um teto, sem emprego, sem rumo.

Dias depois, seu pai faleceu. A mãe, doente, levou-a imediatamente para morarem juntas. Venderam a casa e foram embora para outra cidade, fugindo do perseguidor e desse passado doloroso. Duas mulheres impiedosamente feridas por pessoas em quem confiaram.

Essa mulher fez um comentário em um vídeo meu. Logo abaixo, um homem identificado como Luiz Paulo rebateu dizendo: “Você é só mais uma traumatizada”. Pois então, Luiz Paulo. Quem foi que traumatizou?

@jnaujorks

Respondendo a @Paulo Silva Tô aqui só pelo deboche?

♬ Quirky Suspenseful Indie-Comedy(1115050) – Kenji Ueda

Já recebi uma infinidade de histórias parecidas. Mulheres juntando seus cacos, tentando sobreviver apesar dos dissabores. É claro que existe muita mulher narcisista por aí, mas precisamos lidar com conceito de maioria: a quantidade de homens traumatizados por mulheres é tremendamente menor, até por uma questão de estrutura social. O mundo é preparado para curar o homem, seja do que for. Logo ali ele vai encontrar uma mulher com um aflorado instinto de cuidado, e tudo se ajeita. Já o destino da mulher traumatizada é escolher a solidão para evitar um novo trauma, ou uma nova violência.

Para  quem ficou até o final do texto, uma atualização:
A moça da nossa história, morando com a mãe em outro estado, resolveu voltar a estudar. Está na faculdade em um curso para, no futuro, ajudar outras mulheres em situação de vulnerabilidade. Ela não está namorando, decidiu dar um tempo para se encontrar. Faz terapia, frequenta um centro espírita, voltou para a academia, e no fim do ano vai viajar para a Europa com 2 amigas.

Descobrir a vida só depois do sofrimento não é o caminho correto, mas muitas vezes, é o caminho que temos. Detesto aquela máxima que diz “confie no processo”. Eu não confio no processo, confio em mim. Dos traumas que vivi, nenhum me destruiu, mas todos me ensinaram. Se a vida me obrigar a produzir pérolas em volta de uma agressão, vou cuspir uma a uma e guardar num lugar seguro. Depois, Deus te livre do que vou fazer com elas.

Espero ter ajudado.
#Paz.

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Este conteúdo reflete, apenas, a opinião do colunista Não Sou Obrigada, e não configura o pensamento editorial do Primeira Página.

Comentários (2)

  • Janete

    Excelente texto para reflexão. Pena q muitos homens e até algumas mulheres não tem capacidade de refletir.

  • Cristina

    Me vi no relato, não que tenha passado pela mesma situação, mas por tolerar “você é louca”, “você é desequilibrada”, “você nunca vai ser ninguém que presta”, “nunca vai ter nada”, e outros.
    A gente vai criando uma couraça para se proteger e acaba se afastando até do que é bom. Até, e se conseguir, que se dá conta de que precisa tirar o cabresto do rosto pra continuar. continuar a viver, a sorrir, a sentir as delícias que a vida lhe proporciona. Não que vá esquecer, mas apenas aprender que melhor só que mal acompanhada.

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