Jaqueline Naujorks

Delegacia da Mulher é um limbo de corações dilacerados

Toda mulher que está nesse lugar, é para virar-se do avesso e enfrentar uma realidade terrível de encarar

Toda mulher que está nesse lugar, é para virar-se do avesso e enfrentar uma realidade terrível de encarar. Foi assim que a história da Dulce mudou a minha vida.

Design sem nome 44

Sei que tenho uma fama de feminista militante, e hoje venho te contar a razão. Há anos tenho que ter estômago suficiente para dar notícias terríveis sobre violência contra a mulher, famílias destroçadas pelo feminicídio, mulheres que murcham em vida, em existências sem uma gota de amor, ao lado de um traste. Conheci essa realidade na comunidade onde morei durante anos. Uma vizinha apanhava todo dia do marido, uma criatura de quase 2 metros, imenso, truculento, que andava bêbado dia e noite. A gente só ouvia os gritos, dela e da criança pequena. Até que um dia, ela desapareceu.

Toda vez que preciso escrever uma matéria sobre violência contra a mulher, me sinto de novo em 1998 ouvindo os gritos sem poder fazer nada. Naquela época, no interior, viatura não vinha socorrer mulher apanhando de marido na madrugada. Não existia Maria da Penha. As vizinhas é que se uniam e batiam na porta, visitavam a vítima para convencê-la a ir até a delegacia ou fugir para a casa de algum parente, antes que algo pior acontecesse. E acontecia. Até pouco tempo, se um homem matasse a esposa, o crime poderia ser enquadrado em “legítima defesa da honra”. Em 25 anos as leis mudaram, mas o comportamento dos homens não.

Houve um dia em que precisei ir até a delegacia da mulher, não na condição de repórter como tantas vezes fui, mas na condição de vítima. Foi numa DEAM que decidi denunciar o homem que me perseguia nas redes sociais, e naquele dia descobri que, por não ter vínculo com ele (eu não o conhecia, mas ele me via todos os dias na TV), a polícia não faria nada. Além da gigantesca frustração e da vontade de devolver a agressão, o que provavelmente me custaria o réu primário, enquanto esperava minha vez de ser atendida, reparei numa figura sentada sozinha entre as tantas cadeiras ocupadas por mulheres feridas naquela delegacia.

Ela estava pálida. Amarelada, na verdade. Lábios sem cor, olheiras profundas. Numa cadeira lá no canto, ela chorava quieta, com seu lencinho de papel. Na cabeça, um lenço rosa. Acima dos olhos, nenhum pelo. Ela não tinha cílios, nem sobrancelhas. E nem cabelo. Ela tinha câncer.

Com a estranha coragem que jornalistas têm, de chegar em estranhos fazendo perguntas, resolvi me aproximar dela e sentei na cadeira ao lado. Ali, naquela sala de espera, não tem rica e não tem pobre, não tem patroa e nem empregada, ali toda mulher é igual. Disse um simples “Oi” e sorri. Ela claramente estava sentindo muita náusea, a provável razão de sua cor amarelada, e me respondeu um “Oi”, sorrindo com os olhos inchados de chorar. Aquilo me doeu em um lugar tão profundo, que resolvi ultrapassar o limite da sensibilidade e perguntar o que tinha acontecido para ela estar naquela sala.

Vamos chamá-la de Dulce. Ela se casou com 17 anos, por insistência da família, com um homem mais velho. Teve um filho, que morreu aos 20 anos num acidente. O marido, que foi seu único homem, ao longo da vida passou-lhe incontáveis doenças venéreas. Alguns meses antes, num desses exames ginecológicos, ela fez também uma mamografia. O resto vocês podem imaginar. O câncer de mama estava além do estágio inicial e ela teve que começar o tratamento imediatamente. 

A quimioterapia forte, enfraqueceu fisicamente uma mulher que sobreviveu à dor maior, que é a perda de um filho. Dulce começou a sentir muita náusea, e não conseguia mais cozinhar ou cuidar da casa. O tempo que não estava no hospital, estava deitada em casa, com um balde ao lado da cama, passando mal. O marido no início ficou assustado com a notícia do câncer, mas passado o choque, começou a reclamar que não tinha comida feita quando ele chegava. Dulce argumentava que não conseguia cozinhar, e ele se recusava a gastar pedindo algo ou fazer qualquer coisa ele mesmo.

Com o passar dos meses e a intensificação do tratamento de Dulce, os sintomas ficaram mais agudos. Ela emagreceu muito, e sentia uma enorme fraqueza. O cabelo caiu, a autoestima se foi. O marido, que só reclamava que ela não servia mais para nada, começou a debochar dela dentro de casa dizendo que estava feia e que iria procurar outra mulher na rua. Fragilizada demais para combatê-lo, ela nada dizia.  

Encorajado pelo silêncio da esposa, ele passou a torturá-la psicologicamente: dizia que ela não servia mais para nada, que se soubesse que a mulher iria apodrecer não teria casado, que ela era imprestável e que colocaria ela na rua. Dizia que não trabalhava para sustentar uma preguiçosa. Um dia, chegou bêbado em casa e tentou estuprar a mulher que foi sua companheira por 23 anos, a mulher que vomitava sem parar em um balde ao lado da cama. Como não conseguiu forçar o sexo, bateu nela. No dia seguinte, mandou que ela pegasse suas coisas e fosse embora até o fim da tarde, porque ele traria outra mulher para morar na casa. Isso tinha acontecido naquela manhã. O dia em que uma Dulce machucada de tantas formas diferentes foi até a Delegacia da Mulher, porque não tinha para onde ir.

Sei que ao ler esse relato, você está sentindo o mesmo embrulho no estômago que eu.
Dulce é uma entre milhares de mulheres abandonadas por seus companheiros quando não podem mais servi-los. Quando adoecem, quando enterram seus filhos, quando a dor lhes consome, elas não servem mais como diversão, nem como serviçal. São expulsas de casa, ou torturadas até que saiam por conta própria.

A raiz do comportamento do (maldito) marido de Dulce é a mesma que faz com que um homem ache justificável matar a mulher que não lhe quer mais. É a mesma que faz um homem matar o próprio filho para ver a ex sofrer. É o mesmo machismo que dá coragem ao estuprador, ao homem que bate, que diz as ofensas impensáveis. Palavras para ferir a mulher, saindo da boca do ser que um dia foi amado por ela.

Na sala de espera da delegacia da mulher, todas nós somos iguais.
Mulher de político, mulher de caminhoneiro, Dulces e Jaquelines, Vanessas e Luizas, Carolinas e Carinas, todas as diferenças somem quando nos igualamos como vítimas do machismo. A mulher de 55 anos, a menina de 25 anos, filhas, mães, avós. Toda mulher conhece a sensação de estar tão profundamente ferida, que uma mão estendida em apoio é um afago para a alma, é a corda que alcança o fundo do poço.

Militar na defesa da mulher é jogar a corda para quem ainda está lá.
Por cada Dulce que não conseguimos proteger, que a gente salve uma Maria, que vai salvar uma Dalva, que vai salvar uma Sueli, que vai ensinar sua filha a jamais aceitar ser tratada com desprezo. 

A Dulce que conheci, pouco tempo depois foi embora deste plano. Ela não soube, mas a história que contou naquele dia mudou minha vida. Na pandemia, fechada em casa, quando vi a violência contra a mulher aumentando tanto em todo o país, criei uma página no tiktok para que meus vídeos falando sobre relacionamento abusivo alcançassem mulheres em qualquer lugar, para que a mensagem de encorajamento chegasse a outras Dulces. Hoje, esses vídeos têm mais de 10 milhões de visualizações, todos os dias fortaleço milhares de mulheres e recebi incontáveis mensagens de outras que ajudei a libertar de companheiros abusivos.

Querida Dulce, veja que enorme boa ação você fez!
Ser mulher nesse mundo cão é jogar a corda todos os dias para o fundo do poço e puxar aquela que não consegue sair sozinha.
Que as suas palavras sejam sempre escada, e nunca empurrão.

Este conteúdo reflete, apenas, a opinião do colunista Não Sou Obrigada, e não configura o pensamento editorial do Primeira Página.

Leia também em Comportamento!

  1. Por que ruas do Santa Amália têm nomes de aves? BQQ revela origem curiosa

    A reportagem especial mostra que a mudança começou ainda em 2001, quando...

  2. O tom de voz também comunica

    A sua maneira de se comunicar não depende somente do que você fala, mas...

  3. Lúcia Maggi, aos 93 anos, tem fortuna equivalente a cerca de R$ 5 bilhões. (Foto: Divulgação) Ela aparece na lista da Forbes de mais ricos do brasil

    Lista da Forbes 2025 tem só uma mato-grossense e ela tem R$ 5 bilhões

    A edição 2025 da tradicional lista de bilionários divulgada pela revista Forbes...

  4. Lei do Stalking: 4 anos combatendo perseguidores

    Como a perseguição que sofri ajudou a criar uma lei federal...

  5. Número de casas com internet ultrapassa o de TVs em MT, segundo IBGE

    Em Cuiabá, o número de pessoas com acesso a internet é maior...