Diga-me como falas e te direi de onde és

Valorizar os sotaques é uma forma de fortalecer a identidade regional

O idioma é o mesmo, mas em cada lugar do Brasil ele tem uma melodia, um jeito diferente de ser falado. O ‘s’ é pronunciado com chiado no Rio de Janeiro. No interior de São Paulo, o ‘r’ tem aquele jeito mais caipira, algo bem diferente de como se pronuncia o mesmo fonema no nordeste e no sul do Brasil. Em Minas Gerais, encurtar as palavras é quase uma regra, não exceção. Usar ‘você’ ou ‘tu’? Depende! Se estiver no Rio Grande do Sul, no litoral de Santa Catarina, no Pará ou no Maranhão, o ‘tu’ é unanimidade. Nas outras partes do país, a maioria fala ‘você’. Nas cidades pantaneiras e em Cuiabá, o povo tem um ‘djeito’ único de falar e a chuva é ‘tchuva’.

Essas diferenças nos sotaques e no jeito de falar o português no Brasil foram temas de inúmeros estudos e estão descritas no Atlas Linguístico do Brasil. E no dia a dia de quem precisa falar em público, será que o sotaque importa? Ele cria uma marca ou ruído na comunicação? Na opinião da fonoaudióloga Ariane Alves, o sotaque é como se fosse um tempero, ele determina como a nossa fala chega aos ouvidos das pessoas. Ariane trabalha na preparação de comunicadores de televisão e rádio e conta que hoje em dia não se busca mais padronizar sotaques. “Ainda há quem busque suavizar, para que algum fonema apareça menos, nada além disso”, conta a fonoaudióloga que acredita que a internet e as redes sociais contribuíram para ouvirmos ainda mais sotaques de todos os cantos do Brasil.

Ariel Palacios (Reprodução)

Com um sotaque que é tido como “peculiar”, o correspondente Ariel Palacios traz as notícias da Argentina e de outros países da América Latina nos programas da GloboNews desde a primeira semana de fundação do canal, há mais de 20 anos. Quem o assiste fica na dúvida sobre a origem do seu jeito de falar. E o jornalista faz questão de explicar: “Para mim, meu sotaque mostra a mistura de diversas culturas que absorvi e isso se tornou uma marca registrada desde que eu era criança”.

Ariel é brasileiro, filho de argentinos que migraram para o Brasil. Ele conta que nasceu “por acaso” em Buenos Aires, foi criado em Londrina (PR), morou também em São Paulo (SP), Governador Valadares (MG), Curitiba (PR) e em Madri (Espanha), casou-se com sua professora de italiano e viveu por alguns meses na Alemanha. “Minha mãe dizia que eu havia criado um sotaque próprio. Não é um sotaque argentino, já que em Buenos Aires me perguntam se sou de Portugal ou italiano e, volta e meia, se sou do Panamá! Aí eu digo brincando: do Panamá, não… mas do Paraná, sim!”

Quando se formou em jornalismo, em 1987, Ariel foi buscar trabalho em um canal de TV e disseram que, apesar da boa voz e do texto, com aquele sotaque não seria possível. Ao entrar na Globonews, ele viu que o sotaque não era impedimento algum. Ariel diz que muitas pessoas comentam que gostam de seu sotaque, mas também há os que o criticam e chegam até a xingá-lo. “Talvez sejam pessoas que não gostam da diversidade. De certa forma, são os negacionistas dos sotaques. Mas o Brasil é diverso, o mundo é diverso. Ainda bem! Caso contrário seria a monotonia de uma ditadura dos sotaques únicos”, diz o jornalista.

Cristina Ranzolin e Priscilla Castro (Reprodução)

Há 26 anos os gaúchos assistem ao Jornal do Almoço, na RBS TV, afiliada da Globo no Rio Grande do Sul, na companhia de Cristina Ranzolin. Entre 1993 e 1996, ela trabalhou no Jornal Hoje ao lado de William Bonner, no Rio de Janeiro. A jornalista jamais disfarçou o sotaque gaúcho e conta que ninguém nunca pediu para mudar nada. “Sou gaúcha, tenho sotaque gaúcho, com muito orgulho!”. E foi assim também quando ela apresentou uma edição do Jornal Nacional, no rodízio com apresentadores de todo o país para celebrar os 50 anos do telejornal.

Priscilla Castro, apresentadora da TV Liberal em Belém, também representou seu estado nas edições especiais do Jornal Nacional. A jornalista também diz que nunca foi orientada a tirar ou reduzir o sotaque, nem na bancada do JN. Priscilla lembra que no Pará as pessoas têm um jeito de falar bem característico, com um ‘s’ que aparece mais nitidamente. Priscilla destaca outra característica do jeito paraense de falar: “Aqui usamos o ‘tu’ e a conjugação verbal correta: tu viste, tu fizeste, tu falaste…”

O Brasil único, sem diferenças na fala, não é possível. As diferenças fazem parte da riqueza do Brasil e ajudam a criar a identidade nacional. Essa é a opinião do ator mato-grossense Romeu Benedicto, que já fez diversos trabalhos em teatro e televisão. No ano de 2022, integrou o elenco da primeira fase da novela Pantanal, como o peão Anacleto. O ator lembra que antes sentia uma certa orientação para neutralizar o sotaque para conseguir mais trabalhos. “Hoje não mais! Hoje o sotaque é um diferencial”, ressalta Romeu. O artista faz questão de destacar suas origens pantaneiras: “Meu sotaque é minha marca, fala de onde eu venho, minha origem, a raiz de onde venho. É esse o nosso djeito”.

E aqui vai uma dica de quem ama viajar: quando for visitar um novo lugar, além de conhecer a paisagem, a cultura e a gastronomia, aprecie também o sotaque de quem vive ali. Ouvir diferentes melodias do mesmo idioma é uma maneira de aprender mais, de conhecer e valorizar a nossa brasilidade.

Ator mato-grossense Romeu Benedicto (Reprodução)

Este conteúdo reflete, apenas, a opinião do colunista Comunicação de primeira, e não configura o pensamento editorial do Primeira Página.

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