Existe "falar certo" ou "falar errado"?
O preconceito linguístico surge quando há menosprezo pelo jeito de falar ou escrever de quem não segue a "norma culta"
Como uma pessoa nascida no sítio, filha e neta de migrantes e retirantes nordestinos, fui acostumada a escutar um linguajar que nem sempre era igual ao que eu aprendia na escola. Na infância, eu era estudante aplicada nas aulas de português, amava gramática, conjugações verbais e escrever redações.
Gostar de estudar língua portuguesa me fez perceber que existia um outro jeito de falar e, muitas vezes, me questionava o que era certo e o que era errado. Com o passar do tempo compreendi que, na verdade, certo e errado são coisas muito relativas quando o assunto é a linguagem. E quem julga de forma intolerante o modo como alguém fala está expressando preconceito linguístico.

O relato que ouvi de um colega repórter é um exemplo desse tipo de preconceito que muita gente enfrenta. O jornalista estava fazendo a cobertura do funeral de uma família que morreu num acidente. Uma senhora chegou e perguntou: “Esse é o enterro da ‘famia’ que morreu?” Uma mulher, parente dos falecidos, se aproximou e pediu, de forma grosseira, para a senhora se retirar e procurar uma escola para aprender a falar corretamente. É direito da família ter privacidade num momento de dor, mas isso não justifica a forma como a senhora humilde foi despachada.
Esse é um caso típico de discriminação entre pessoas que falam o mesmo idioma. O preconceito linguístico ocorre de diferentes formas, quando não há respeito pelas variações nas formas de falar e escrever, como sotaques, regionalismos e gírias.
Entre tantos estudos sobre as variações linguísticas discutidos em salas de aula nos cursos de Letras, Sociologia e Comunicação, destaca-se o livro ‘Preconceito Linguístico – O que é, como se faz’, do doutor em Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo e professor da Universidade de Brasília, Marcos Bagno.
O livro foi publicado em 1999, já passou da 55ª edição e é referência na defesa da valorização da diversidade cultural brasileira. O autor argumenta que a língua é dinâmica e está em constante desenvolvimento. Portanto, se adapta às novas realidades de seus falantes, cumprindo seu papel de garantir a comunicação.
Assim como ocorre em todos os idiomas, as variações linguísticas são influenciadas por fatores, como região, idade, grupo social, aspectos culturais e etnia. Para Marcos Bagno, uma sociedade verdadeiramente democrática não pode desconsiderar os modos de falar dos diferentes grupos sociais.
Quando menosprezamos o jeito de falar de um povo, estamos considerando como inferiores as pessoas que assim se comunicam. Normalmente, esse prejulgamento é dirigido às classes sociais menos favorecidas, justamente as que têm menos acesso à educação formal. Tratar com menosprezo só ajuda a perpetuar essa desigualdade.
Voltando à pergunta que está no título – existe “falar certo” ou “falar errado?”, podemos concluir que a melhor resposta é encontrar o que é adequado ou não em relação à comunicação. Isso significa que tudo vai depender do que faz sentido ou não em cada situação, como nos exemplos abaixo:
= Adequado: “Miga, topa um churras aqui em casa no findi? E pode trazer o boy.”
= Inadequado: “Gostaria de convidar a senhora e seu cônjuge para um churrasco no fim de semana vindouro.”
Nas duas situações, o contexto é o mesmo: alguém fazendo um convite para uma amiga próxima. O segundo convite está correto gramaticalmente, segue as regras da linguagem formal, mas está inadequado por causa da situação.
Com mais adequação linguística e abolindo todo tipo de preconceito com o jeito de falar do outro, a comunicação flui sem exclusão e com respeito a todas as formas de se expressar. Estudar língua portuguesa e gramática, sim! Excluir ou menosprezar quem não tem o mesmo nível de escolaridade ou fala de um jeito diferente, jamais!