Gagueira não tem graça, tem tratamento

Distúrbio na fluência da fala afeta milhões de brasileiros e pode ser uma barreira na comunicação

“Sabe aquela sensação maravilhosa de apenas abrir a boca e falar sem pensar, sem se preocupar? Nunca conheci.” O relato é de uma pessoa que tem gagueira, distúrbio na fluência da fala que afeta dez milhões de brasileiros. Desse total, segundo o Instituto Brasileiro de Fluência, dois milhões enfrentam gagueira crônica, uma condição que pode dificultar relacionamentos e ser um obstáculo na vida profissional. Diversos estudos apontam que a gagueira diminui a empregabilidade e a probabilidade de promoção.

A jornalista e empreendedora Lidian Coelho fala dos desafios que enfrenta por ter gagueira

As limitações impostas pelo distúrbio já foram tema de filme vencedor de Oscar. O Discurso do Rei, filme britânico de 2010, conta a história do rei George VI (pai da rainha Elizabeth II), que contrata um terapeuta de fala para lhe ajudar a superar a gagueira. Logo no começo, o filme retrata com muito realismo a reação da plateia ao assistir ao discurso do monarca, que tem enorme dificuldade para se comunicar.

Na vida real, situações como as mostradas no filme podem gerar constrangimento e sofrimento. Para entender melhor essa condição, trazemos aqui o relato da jornalista e empreendedora Lidian Coelho. Ela conta que gagueja desde que teve consciência da fala, faz tratamento fonoaudiológico e se considera uma atrevida por ter encarado muitos desafios, entre eles, trabalhar como repórter e apresentadora de telejornal.

“Tenho dias de maior ‘controle’ da minha fluência, mas não posso contar com isso. Se isso já me atrapalhou, me impediu de fazer alguma coisa? Claro que sim! Mesmo assim, acho que fui atrevida e enfrentei. Na juventude, queria muito ser jornalista e me formei pela UFMT. Consegui um estágio em uma emissora de TV em Cuiabá. Meu sonho era ser apresentadora ou repórter. Durante algum tempo consegui fazer muitas coisas na TV, tive a oportunidade de apresentar, fazer algumas reportagens, trabalhar com produção. Sempre encontrei pessoas muito especiais que acreditaram em mim, apesar da gagueira. E quando me perguntam o que eu fazia para não gaguejar, digo ‘eu não sei’. Eu consegui realizar meu sonho de ser jornalista, como eu queria. Não deixei que essa limitação me impedisse. E até hoje, não deixo de fazer nada por isso.”

Ela conta ainda que, com a ajuda de uma fonoaudióloga, aceitou o problema e buscou ajuda.

“Foi nessa época que conheci uma fonoaudióloga especialista em gagueira, que me ajudou a aceitar o problema de forma racional, buscando ferramentas para que eu pudesse ter o controle da minha fala. É preciso que as pessoas entendam que quem gagueja não é nervosa, não precisa respirar para falar. Precisamos de um pouco mais de tempo que os outros, de um pouco mais de empatia, paciência. Isso pode, sim, ajudar. Tem dias mais difíceis? Muitos! Mas não posso parar. E ainda acho que posso ajudar muitas pessoas que gaguejam e também as que não gaguejam com informação. Ninguém é obrigado a saber lidar com a gagueira. Mas, eu enquanto pessoa que gagueja, tenho a obrigação de ajudar.”

A fonoaudióloga Daniella Curriel é a única especialista em gagueira em Mato Grosso. Ela explica que esse distúrbio na fluência da fala é de origem neurológica. Ocorrem interrupções no fluxo contínuo da fala, tais como repetições (e-e-eu), bloqueios (quando trava e não sai) e prolongamentos (quando estica o som da palavra).

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Filme de 2010, indicado ao Oscar, retrata a vida do rei britânico que lutou contra a gagueira

Muitas vezes acontecem movimentos corporais associados, como piscar de olhos, por exemplo, ou esforço físico para falar. Segundo Daniella Curriel, em 80% dos casos, a causa da gagueira é genética. O tratamento pode ser efetivo em até 95% dos casos, quando há o diagnóstico ainda na infância, e a reabilitação deve ser feita sempre por um fonoaudiólogo. Não se fala em cura, já que gagueira não é uma doença, o termo adequado é remissão. A fonoaudióloga explica que em adultos não há remissão total, mas há melhora no quadro.

“Gaguejar não é engraçado. É importante que as pessoas saibam que a gagueira é uma alteração neurológica, que tem tratamento, e que traz sofrimentos a quem tem a dificuldade. É preciso evitar piadas, risadas, e a desinformação deve ser combatida. Mitos como curar com sustos e simpatias, esperar anos na esperança de passar, pedir para a pessoa que gagueja ficar calma e respirar apenas pioram o quadro e causam constrangimento”. Daniella Curriel destaca ainda que a gagueira deve ser levada a sério e a pessoa que gagueja deve ser respeitada. A fonoaudióloga enfatiza: “Gagueira não tem graça, tem tratamento”.

Apesar das limitações sofridas por quem gagueja, não há um tratamento específico oferecido na rede pública de saúde. Na Câmara Federal, tramita o Projeto de Lei 2461/22 que cria a Lei de Atenção à Gagueira e à Pessoa que Gagueja. O objetivo é assegurar a todos o direito ao diagnóstico precoce e ao tratamento, evitando qualquer tipo de discriminação com pessoas gagas. “O modo de se comunicar está totalmente ligado ao relacionamento social, quando há alguma dificuldade no caminho, são grandes as chances de a pessoa desenvolver problemas psicológicos, como ansiedade, depressão e falta de autoestima”, diz o deputado José Nelto (PP-GO), autor da proposta. O projeto ainda será analisado por comissões da Câmara dos Deputados.

Este conteúdo reflete, apenas, a opinião do colunista Comunicação de primeira, e não configura o pensamento editorial do Primeira Página.

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