Jaqueline Naujorks

Invisibilidade do trabalho de cuidado: do Enem à casa das nossas avós

Nenhuma pauta humanitária na redação pegaria adolescentes tão de surpresa como essa

Quando eu tinha 10 anos, na casa da minha avó no interior do RS, um ritual me deixava muito curiosa: o fenômeno que acontecia na cozinha ao meio-dia. Em frente à TV da sala, os homens da família aguardavam o almoço assistindo ao jornal local. Todas as mulheres da casa (inclusive eu) estavam no cômodo ao lado às voltas com panelas e toalhas de mesa. Comíamos em silêncio, para que eles pudessem continuar ouvindo as notícias.  

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Ao final da refeição, cada um deles pegava seu palito de dentes e voltava para a sala, e as mulheres começavam uma dança digna de colmeia: uma recolhe a louça, uma lava, outra seca, outra limpa o chão. Eu, sentadinha no meu canto, olhava de um lado para o outro, porque não era parte de nenhum dos rituais. Pequena demais para arear panelas direito, menina demais para assistir às notícias.

Mais tarde, ficava indignada porque eu queria ver o jornal, e a mim aquilo não era permitido. Meu lugar era secando a louça de todo mundo. Não fazia sentido na minha cabecinha de criança e tampouco faz hoje, aos 40 anos. Na casa onde eu morava com minha mãe e duas irmãs, cada uma fazia sua parte e quem folgasse levava uma voadora. Me casei com um cara que fazia tudo dentro de casa, mas percebi que de qualquer maneira, aquela tácita obrigação de cuidar da engenharia doméstica recairia sobre mim, simplesmente porque sou mulher.

Nenhuma outra pauta humanitária pegaria adolescentes tão de surpresa na redação do Enem. Jovens preparados por horas exaustivas de estudo, talvez não tenham reparado na mulher que lhes levava um lanche ou lavava o uniforme com amaciante. Talvez nunca tenham reparado que o quarto estava limpo, apesar de nunca terem comprado um único tubo de água sanitária. Sua logística em casa foi garantida, na esmagadora maioria dos casos, por uma mulher.

O trabalho doméstico é o mais pesado que existe, porque ele não acaba. Aos finais de semana, quando trabalhadores têm seu descanso remunerado, as donas de casa trabalham o dobro. Ao final do dia, quando ela poderia dormir, tem uma criança doente precisando ser medicada, ou um adolescente à beira do burnout precisando de acolhimento, ou um marido que lhe demande atenção sob pena de “procurar na rua o que não encontra em casa”.

A função começa cedo e termina tarde: garantir que todo mundo tenha tudo o que precisa leva horas e é simplesmente exaustivo. Depois de comprar comida, cozinhar e lavar a louça, tem casa para limpar, roupa para lavar e já é hora de buscar os filhos. Ao final do dia, quando ela reclama de dor nas costas, ouve como resposta um “Mas você não fez nada o dia inteiro, só ficou em casa!”

Tudo isso pode parecer muito corriqueiro e desimportante, mas é um fato social tão notável, que virou tema de redação na prova mais disputada do país. O cuidado doméstico é invisibilizado por gerações e gerações de meninas criadas para cuidar, e meninos ensinados a serem cuidados. Quer um exemplo prático? Se você está em um churrasco com seus amigos e uma criança derruba refrigerante no chão, quem é que salta para limpar imediatamente?

E aí você vai me dizer “ah, mas eu ajudo minha mulher em tudo dentro de casa” ou “meu marido me ajuda em tudo dentro de casa”. Ok, amiga, mas a obrigação dele como um ser humano adulto e funcional não é “ajudar”.  O trabalho doméstico não é uma função sua que ele alivia porque é um bom marido. O asseio da casa que se divide, é obrigação de todos, igualmente. 

Na maior parte dos lares brasileiros, as mulheres fazem alguma coisa para ter renda, portanto, não estamos mais em 1950, quando os homens eram provedores e as esposas facilitadoras de rotina. O que mais se vê, ainda em 2023, são mulheres exaustas pelo trabalho doméstico acumulado ao remunerado, e 11 milhões de mães abandonadas pelos genitores dos filhos, criando crianças sozinhas.

Na cozinha da minha avó, depois de muito observar, num arroubo de coragem perguntei ao vô se ele não sentia vergonha de levantar da mesa e não fazer absolutamente nada para ajudar. Ele não soube o que responder, e fui imediatamente repreendida por todas as mulheres presentes, por questioná-lo. Da casa da vovó até a prova do Enem, infelizmente caminhamos pouco socialmente. 

A obrigação de cuidar não deve ser uma herança que toda menina recebe assim que ganha sua primeira boneca. Meninos também devem ser educados para o cuidado doméstico, ensinados a ninar bebês, lavar louça e banheiro, cuidar de crianças e idosos, tomar o próprio antigripal, fazer comida além de miojo e ovo frito. Se você é um homem que faz isso, que ótimo, mas você entende que a maior parte não faz porque não se sente na obrigação de resolver essas questões? 

O cuidado doméstico não macula a masculinidade, e é impressionante que essa ideia ainda permeie o entendimento, mesmo que sutilmente. Tornar o assunto um dos mais discutidos no país, com a seriedade que uma dissertação acadêmica requer, é o começo de uma reflexão necessária e construtiva. Resta saber se toda redação nota mil, terá como autor um futuro médico ou advogado de sucesso, que lava o próprio prato após a refeição e não vai direto para a sala palitar os dentes diante da televisão.

Este conteúdo reflete, apenas, a opinião do colunista Não Sou Obrigada, e não configura o pensamento editorial do Primeira Página.

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