O Conto da Aia: como chegamos tão perto de uma distopia?
O país parou para discutir a pena da mulher que engravida por estupro
Era uma vez um país que em 2023 registrou quase 1.500 feminicídios. Este país, incapaz de conter seu índice de violência doméstica, nem mesmo o número de abusos contra crianças (60% deles dentro da própria casa), simplesmente parou para discutir a pena que vítimas de estupro deveriam receber por abortarem fetos após 22 semanas de gestação. A pena para a mulher que aborta é maior que a do estuprador.

Ironicamente o país da burocracia, da justiça que leva anos para desenrolar um processo qualquer, botou um prazo mais curto para uma mulher se livrar do fruto do abuso sem ser presa. Qual a chance de se passarem 22 semanas até uma que uma menina estuprada consiga na justiça a autorização para abortar?
“Ah, mas a criança não tem culpa se foi concebida num abuso”.
A mãe também não.
As mesmas pessoas que estão aos berros defendendo essa légua de retrocesso, são as que se beneficiam de um sistema que oprime meninas pobres (sim, porque a filha do deputado que engravidar sem querer, vai abortar com segurança em uma clínica luxuosa fora do país). São as mesmas pessoas que não querem que crianças aprendam educação sexual nas escolas, para que elas não saibam diferenciar uma brincadeira de um abuso.
A história de mulheres tratadas como simples matrizes, botando no mundo crianças concebidas à força, é o roteiro da famosa série “The Handmaid’s Tale” ou “O Conto da Aia”. O mais assustador nisso tudo é que trata-se de uma distopia, ou seja, “lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação”. Em que momento chegamos tão perto disso?
A discussão do PL-1904/2024, que equipara o aborto ao homicídio está tomando as redes sociais há dias, mobilizando a opinião pública e gerando protestos em todo o país (inclusive em Cuiabá). Se aprovado, ele vai criminalizar mulheres e crianças que praticarem o aborto após 22 semas de gestação, com pena de até 20 anos de prisão, enquanto o estuprador pegará 12 anos – se condenado.
Toda a discussão em torno da pauta “aborto” gera embate no Brasi há décadas. Pessoas que jamais pisaram na periferia, que não se interessam por questões de saúde pública porque nunca usaram o SUS, que não dão um centavo de suas fortunas em projetos de proteção a crianças abandonadas, sobem em seus palanques para pregar apoio à vida, ao direito do feto de nascer. Concordamos que toda vida deve ser preservada. Mas não seria importante preservar também a vida da menina abusada?
Para falar sobre a necessidade da consulta pública, quero ilustrar com um print da enquete na página da Câmara Federal, único espaço para a sociedade opinar sobre o assunto, retirado no dia 17/06, um mês após ser aberta para votação:

E por fim, gostaria de perguntar aos deputados quando devemos ter um projeto de lei criminalizando o aborto paterno. Aquele pai que some, abandona o filho, joga toda a responsabilidade na mãe da criança, só paga pensão na justiça, despreza a filha, se recusa a comprar um remédio, deixa a criança chorando esperando pela visita que nunca acontece. Isso mesmo, aquele pai que na velhice processará o filho por abandono, e o jovem que jamais recebeu afeto será obrigado por lei a amparar um estranho.
Ou quem sabe abrir o acesso à vasectomia, que é um processo reversível, ou pesquisas de anticoncepcionais masculinos. Quem sabe castração química para condenados por estupro? Para reincidentes em abusos infantis? Talvez um projeto de lei propondo penas mais severas para feminicidas? Quando essas propostas que incidem sobre corpos masculinos forem submetidas à aprovação popular, faço questão de votar na enquete.
Nunca encontrei uma mulher que não tenha alguma história para contar de estupro, abuso ou assédio. Todas, absolutamente todas conheceram em algum momento da vida, a normalização desses comportamentos com justificativas como “É a natureza deles”. Mas infelizmente, a real natureza machista não é uma premissa apenas de homens.
É impressionante que o mesmo país que tem a Maria da Penha, uma das legislações mais progressistas e efetivas para a proteção da mulher, seja o mesmo que busca criminalizar como homicida uma menina que não deseja criar o fruto de um estupro. Mais impressionante ainda é ver uma mulher, que sabe onde aperta esse sapato, aplaudir essa iniciativa com a boca espumando de ódio.
Cara Margareth Atwood, me assusta dizer que nos aproximamos da história que você criou. Me assusta ver que os direitos das mulheres são ameaçados, muitas vezes por outras mulheres. Na contramão da evolução da humanidade que salta com a tecnologia, os costumes ficam cada vez mais barrocos, as liberdades são tolhidas e as cabeças adoecem. E sinceramente, retroceder é cansativo. Muito, muito cansativo.
Comentários (5)
Excelente matéria, vai abrir a mente de muita gente que estão defendendo essa barbaridade sem nem entender o que realmente está acontecendo.
Bom Dia Jaqueline, Parabéns pelo que você escreveu, concordo,pois tenho Filha, neta e enteada!
Excelente matéria,principalmente na parte a que se refere aos homens/pais.
E deixo aqui minha opinião, não a respeito do aborto por conta de abusos, mas a respeito da legalização que muitos desejam a legalização, que tal a legalização da laqueadura, vasectomia, mesmo para aqueles e aquelas que não tenham filhos, muitos não querem.
Quanto a essa lei ABSURDA que aí está, com certeza é de interesse de poucos, porque a maioria padece nas sombras onde ninguém vê
Que é necessário fazer alguma coisa pra defender as mulheres e crianças,com certeza ,mas a castração química,não resolve,a não ser que corte mãos, pés,e até a língua,as leis não podem ser brandas,nem a tornozeleira adianta,o que tem que ser feita é leis mais severas e cumprir ,
Que texto magnífico. Desde semana passada me sinto viver em Gilead. A Pl 1904 equipara o pensamento social Brasileiro ao da idade média. É um retrocesso? Não somente. É uma violência descomunal.