O peso de ser a filha mais velha
Um assunto que pouco se fala, mas lota consultórios
Hoje quero tocar em um assunto delicado, que é mais abrangente do que imaginamos: a Síndrome da irmã mais velha, que acomete tanto as primogênitas, quanto a única filha mulher, a filha do meio que ficou com a carga quando a mais velha saiu de casa ou a caçula que herdou a obrigação de cuidar dos pais. A menina destinada a ser funcional o bastante para não dar trabalho. É um costume horroroso que pesa mil toneladas sobre as costas das mulheres.
Precisamos começar fazendo um resgate histórico: os pais dos nossos pais tinham muitos filhos. Conforme os mais novos chegavam, os mais velhos ficavam responsáveis pelos menores e assim as famílias iam crescendo, com filhos criados pelos pais, mas realmente cuidados pelos irmãos. Nessa conta, a figura da irmã mais velha acabou se estabelecendo como uma versão mais acessível da mãe.
Essa configuração familiar acabou jogando sobre as filhas a obrigação de ajudar a mãe a operar lares tão cheios de gente. Acabava pesando sobre elas a responsabilidade de cuidar bebês, a limpeza da casa, refeições, cuidado com as crianças que já corriam, e ainda lidar com pais sobrecarregados e irritadiços. O que não enxergamos é o dano que essa imposição causa a uma menina, o quanto ela vai anular suas necessidades e sentimentos para atender ao que os adultos esperam dela.
Você que foi essa menina, já parou pra pensar de onde vem sua sensação de exaustão com a ideia de cuidar? Esse desejo de ser livre, de respirar, viajar, fazer suas loucuras, não dar satisfações ou simplesmente cometer os erros adolescentes que não pôde porque tinha a obrigação de dar o exemplo?
Eu fui a irmã mais velha de 3 meninas. Meus pais se separaram e esse drama por si só já deixa os filhos meio perdidos com suas emoções. Papai e mamãe eram dois jovens de 20 e poucos anos, não tinham maturidade alguma para lidar com um divórcio, e muito preocupados com suas questões, sequer prestaram atenção ao que estava acontecendo comigo. Com os dois ocupados com suas próprias dores, tomei para mim a responsabilidade de cuidar das minhas irmãs menores. Essa compulsão natural de atender à necessidade familiar me custaria muita coisa, que só fui entender agora, depois dos 40 anos.
A primeira delas é o horror à ideia de ter filhos. Eu amo crianças, sou a tia querida, rede de apoio profissional para as amigas, mas a ideia de gerar e cuidar de um ser humano com toda a abnegação necessária me causa arrepios. Na minha cabeça, as escolhas que faço, por mais simples que sejam, podem traumatizar profundamente outro ser humano e minha consciência pesa só de pensar nisso. Para mim, não dói a ideia de jamais conhecer o sublime amor de mãe. O que dói é pensar em dedicar o resto da minha vida cuidando de uma pessoa que só existirá porque eu desejei. Ela é minha responsabilidade. Essa sensação tem uma explicação: estou exausta de cuidar.
Se você adoecer, vou saber te cuidar e farei isso sem pestanejar, mas não porque sou maravilhosamente altruísta. Farei isso porque fui doutrinada a me tornar eficiente na resolução dos problemas dos outros para não ser soterrada por eles. Pesado, não?
Conheço inúmeras mulheres que carregaram pela vida o peso de agradar, de não dar trabalho. Quando alcançam a independência, dificilmente darão qualquer passo na direção contrária. Ainda que tardia, a liberdade de fazer as próprias escolhas terá um peso incalculável na visão de futuro delas. Vão preferir gastar todo seu dinheiro viajando para uma praia no México ao invés de comprar casa e carro, que é o que os adultos gostariam que ela fizesse.
Para as que tiveram filhos, resta desejar que tenham muito apoio e serenidade no processo, para não se anularem nesta jornada. É muito triste pensar que uma mulher vai se sentir cativa das obrigações para sempre, sem sentir o sabor de viver, de fazer escolhas sem culpa, com o eterno pavor de ser exposta ao julgamento de seus inquisidores emocionais.
Todas nós carregamos três ou quatro fantasmas pela vida, cada uma sabe dos esqueletos que guarda no armário, mas é muito injusto que eles segurem sobre nós um eterno pêndulo de punição. A obrigação de ser eternamente a boa menina, a filha que não dá trabalho.
Você precisa abandonar essa ideia de que precisa agradar para ser amada.
Vou repetir em outras palavras:
Agradar os outros não é garantia de que você será amada ou reconhecida, é garantia apenas de cansaço e frustração. Aprender a colocar-se em primeiro lugar sem culpa é o que vai te libertar da sensação de sempre estar errando quando não se sacrificar pelos outros.
Para finalizar, leve essa frase como um mantra: quando as necessidades da sua família precisarem ser atendidas ao custo de uma necessidade sua, está errado. Só para variar, experimente se salvar primeiro.
Comentários (3)
Muito forte e verdadeiro esse texto. Com 33 anos que Eu descobri que eu não precisava agradar todo mundo, que eu deveria e poderia sim fazer as minhas escolhas e errar porque eu sou ser humano. O cuidar de todo mundo hoje só se limita aos meus filhos e sim eu fui essa pessoa que se sentia responsável por todos não só os irmãos mais pela mãe também.
Hoje com 34 anos eu nem ligo pra o que falam, faço o que eu quero e vivo minha vida longe da família porque não quero encheçao de saco de ninguém.
Arrebatador!!!!!Real, sensível, corajoso e acima de tudo: cabível na vida de tantas! Parabéns por expor de forma cristalina, em linguagem simples e de forma verdadeira, tal tema, lançando luz sobre certas situações rotineiras e que podem sim, muitas vezes, limitar viveres! Sim, bagagens emocionais nem sempre são válidas, nem sempre são necessárias e nem sempre, se é obrigatório levar! Como irmã mais velha, rarifico muito do narrado. Texto visceral! “O menor ato de bondade vale mais do que a melhor intenção” Sábio Khalil Gibran! Então, parabéns por ajudar nas quebras de tantas amarras emocionais por aí!
Os danos que essa obrigação imposta, muitas vezes de forma velada e quase que inconsciente, causam na vida adulta são terríveis, afetando não só a vida pessoal mas tb profissional. Porém sempre há tempo para virar essa mesa. Parabéns pela coluna, e por traduzir sentimentos tão comuns a todas nós, filhas mais velhas.