O recomeço que não enxergamos
O choro por trás da porta do consultório ficou gravado para sempre na minha memória.
Na sala de espera do consultório da minha psicóloga, gente de todo tipo olha em volta com enorme curiosidade, fingindo que não. Somos 3 pessoas esperando atendimento: eu, toda maquiada, vestindo ainda a roupa de trabalho, uma moça de seus 25 anos com olheiras profundas e um cara usando um terno azul visivelmente caro.
De rabo de olho, nos observamos. A moça está em crise, noto pela expressão de angústia. Uma mulher que já enfrentou o inferno psicológico reconhece a outra: o olhar denota medo, pavor, tristeza, ou a mais completa desesperança. Sinto uma pontada de dor no coração, e contenho o impulso de abraçá-la.

Essa moça está no lugar onde eu estive um dia, tendo crises de pânico tão frequentes que vivia derrubando o café da caneca de tanto que tremia. Emagreci e era elogiada por isso, quando na verdade o medo que sentia era tão grande que eu vomitava toda vez que a crise vinha. Passei 6 meses vivendo de pão integral e iogurte, as 2 únicas coisas que conseguia digerir. Lembro exatamente da sensação de acordar e ser engolida pelo medo irracional de morrer, de alguém morrer, de todo mundo morrer. Quem viveu isso, reconhece de longe. Fico tranquila por ver essa moça no lugar certo, a sala de espera de uma psicóloga.
Mas meu olhar se detém no homem. É um cara bonito, claramente bem cuidado, brincando com a chave de um carro importado. Deve ter seus 30 anos, 1,70m de altura, está ficando calvo. Quando ele atende o celular, consigo ver as facetas caras nos dentes, mas só quando ele fala, porque em nenhum momento o vi sorrir. Está tão ansioso que não para de mexer as pernas, se ajeitar na cadeira, estalar os dedos, batucar com a chave no celular. Eu diria que ele está ali obrigado, sabe Deus por quem.
A moça é chamada para uma outra sala, e ficamos só eu e ele ali. Trocamos um olhar meio constrangido, mas sinto nele um fio de solidariedade, do tipo, “Bem, cá estamos, né”? Entendo o olhar dele. Só pessoas sofridas estão nesse lugar, pessoas que enfrentam dores de todo tipo e estão conscientes de que não conseguem superar sozinhas. Ninguém vem aqui quando está feliz. No máximo, vêm quando superam a parte aguda do sofrimento, e depois estarão aqui se sentindo grandes coisas, exatamente como eu. Naquele momento, me achava a Xena guerreira que não precisava mais de um lencinho de papel na bolsa para secar o choro.
O rapaz é chamado, e finjo não olhar quando ele entra quase correndo na sala.
Eu tinha ainda uma hora pela frente, então me acomodei na cadeira e coloquei meus fones para passar o tempo no tiktok. Entre um vídeo e outro, ouço o inconfundível som que vem da sala da psicóloga: o uivo da dor, o choro convulsivo, incontrolável, o gemido de bicho ferido que todos nós, pacientes, conhecemos bem. Que dor esse rapaz carrega? Um luto? Um familiar que se foi? Será que algo aconteceu ou ele apenas padece dessa química descompensada capaz de transformar qualquer pessoa em um amontoado de tristeza?
Começo a ficar angustiada, na solidariedade instintiva que nos faz querer acolher quem sofre, aí lembro que ele provavelmente não quer que sua dor seja da minha conta. Há que se respeitar o espaço da dor alheia. Aumento o volume dos meus fones e tento me concentrar nos vídeos para desfocar. É duro frear a curiosidade que me impele a perguntar qualquer coisa para a secretária, mas me contenho. Muito acima da curiosidade está o respeito, e a gente tem que pensar ANTES de ser inconveniente. Por mais que eu quisesse oferecer algum apoio, ali eu só pareceria uma fofoqueira qualquer, daquelas que procura entretenimento na vida dos outros. Coisa mais feia, já diria minha avó.
A hora passou que eu nem vi, e a porta se abriu. O rapaz, recomposto, sorria ao despedir-se da psicóloga com um polido aperto de mão. Ele foi embora, ela me viu, pediu um minuto, fechou a porta de novo. Ouvi o nítido barulho dela abrindo a janela, e de repente subiu um inconfundível cheiro de incenso. Juro. Incenso do bom, daquele caro. Cinco minutos depois, a porta se abriu e ela me chamou.
Na hora que nos sentamos frente a frente, os olhos dela estavam vermelhos, de um choro que tinha acabado de ser enxugado. Fiquei meio sem reação. A gente faz o quê quando é a psicóloga que chora?
Sem saber muito o que fazer, segui o instinto. Perguntei: “Tá tudo bem, doutora? Se precisar marcamos um outro dia, sem problemas”, já pronta para ir embora. Ela tirou os óculos, esfregou os olhos e disse algo mais para si do que para mim. “Tem horas que nem o mais preparado ser humano suporta ser humano”. Nunca esqueci essa frase.
Jamais soube a razão que levou aquele rapaz até a mesma sala que eu. Do alto da minha momentânea falta de empatia, imaginei que um cara cujo terno custa R$20 mil, não teria os mesmos problemas que eu, assalariada, arrimo de família, lutando para sobreviver nesse mundo cão. Nunca mais o vi. Pouco tempo depois recebi alta desse longo tratamento, e hoje, com uma manutenção bem cuidadosa, não tenho mais crises de pânico. Logo depois me mudei e os novos ares deixaram as velhas dores bem cobertas pela abençoada areia do tempo.
Por trás da cortina do choro, jamais enxergamos qualquer caminho.
A dor deixa a mente em torvelinho, especialmente aquela que já está imersa em angústia e desesperança. Do lado de cá, dos que conseguiram atravessar a ponte, a vontade é gritar para os que ainda estão tentando, que passem devagar. Um passo de cada vez, um pé depois do outro. Vai passar, vai ficar tudo bem, mas você vai atravessar uma ponte toda carcomida por cima desse abismo que não se vê o fundo.
O recomeço que não enxergamos é o incenso que se acende depois do choro. É deixar ir a carga que os outros te deixam, é libertar as falas, arejar a casa, liberar o choro, secar os olhos e focar outra vez. Quando não souber o que fazer para recomeçar, experimente abrir as janelas.
Pode não funcionar para mais nada além de te ajudar a respirar.
E um dia você vai descobrir que era só o que precisava fazer.