Querida ex-vizinha, me perdoe por ter te achado uma louca varrida
Quando entrávamos no elevador e eles estavam lá, mãe, pai e filhos, sempre reparava nos cabelos despenteados, nas olheiras, nas roupas desengonçadas
Era fim de março de 2020, começo de pandemia e lockdown comendo solto. Aulas suspensas, trabalhos em home office, noticiário não falava em outra coisa.

Nesta época eu estava grávida de seis meses e havíamos recentemente nos mudado para um apartamento. No andar de baixo morava um casal e seus dois filhos: uma bebê de um ano e pouco e outro maiorzinho, porém ainda criança pequena.
Todos os dias pontualmente às 4h da madruga a menor chorava e acordava a vizinhança próxima, incluindo eu que pensava “nossa, a menina tem mais de um ano e ainda acorda, que saco!” – mal sabia eu da realidade materna…
Durante o dia as horas eram cortadas pelos berros, choros, barulhos de coisas caindo seguido de um “desce daí agora!” ou “já não te falei mil vezes pra não mexer nisso?”. E eu sempre pensava: Jesus, que louca! Pra que foi ter filhos se não consegue se manter calma? – mal sabia eu da realidade materna…
Quando entrávamos no elevador e eles estavam lá, mãe, pai e filhos, sempre reparava nos cabelos despenteados, nas olheiras, nas roupas desengonçadas (provavelmente de pais que passavam o dia pegando criança no colo), mas o que mais chamava atenção era o silêncio deles dois um para com o outro, cortado somente pela agitação das crianças.
Pareciam estar sempre num transe, só com o corpo presente e no automático, realizando a árdua tarefa manter os filhos vivos durante isolamento sem data para acabar. E eu pensava “coitados, deixaram os filhos dominá-los, não conseguem controlar criancinhas que sequer raciocinam direito” – mal sabia eu da realidade materna…
Também não era raro ouvir as discussões de casal que eles tinham. Por vezes o tom subia, muito provavelmente acentuado pelo combo filhos + home office + pandemia. Por que não se separam se estão infelizes?

Mal sabia eu que o amor, quando os filhos nascem, fica em segundo plano por um tempo e isso não quer dizer que ele fez as malas e partiu, apenas que se transformou, se alargou para caber mais gente. Lidar com isso, ainda mais naquele momento pandêmico, atípico, certamente era o maior desafio da vida a dois daqueles pais.
Nos quase um ano que moramos lá, nunca tivemos alguma conversa mais aprofundada, justamente porque na minha inocente cabeça pré-maternidade, eles eram pessoas estressadas e até descontroladas. Loucos, né? Como iniciar amizade com quem vive no limite?
Meses depois saímos de lá. Meu marido, minha bebê ainda com seis meses e eu grávida do segundo filho, bem no comecinho da gestação. Nunca mais os vimos. E a vida de mãe de dois ainda não havia me apresentado completamente seu lado ácido.
Agora, quase três anos depois, cá estamos novamente no condomínio. Voltamos. Agora nós que somos quatro: um casal e dois pequenos, praticamente bebês de dois e três anos. Os cabelos brancos, a coluna arqueada e as características de cuidadores principais de crianças pequenas são nossas agora. Evidentes em nossos rostos.
Os vizinhos é que se mudaram. Não faço ideia de como estejam, mas certamente com as crianças maiores o mar deve estar mais brando praquelas bandas. Te escrevo então, minha cara ex-vizinha, para me desculpar pelo pré-julgamento de outrora e te contar que hoje, aqui no prédio, pasme, a vizinha louca… sou eu!
Comentários (1)
A pessoa que não é mãe simplesmente não tem nenhuma noção da realidade materna. Só passando mesmo pra entender.