Jaqueline Naujorks

Um ano após perder a filha, o neto e o genro, Gilda me ensinou tudo sobre a vida

Como uma mãe com o coração dilacerado escolheu honrar a memória dos seus queridos vivendo.

Gilda é uma mulher forte. Criou os dois filhos sozinha, enfrentou o câncer duas vezes, uma vez no intestino e a outra, em plena pandemia em 2021, na garganta. Na última vez, descobriu um problema no coração, que precisou tratar antes da quimio. Sem poder engolir, alimentou-se por sonda durante muito tempo, ficou magra e debilitada. Costureira de mão cheia, seu ateliê ficou silencioso por mais de um ano. Logo após a notícia da cura, quando ela voltou a comer e se recuperar, quando começava a voltar para as coisas que amava, chegou o dia 29 de agosto de 2022. Ali, sua vida mudaria para sempre. 

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Era 29 de agosto, aniversário do meu pai. Eu estava em Campo Grande, numa viagem rápida, só para comemorar com ele. No final da tarde, deu no jornal ao vivo a notícia de um acidente na entrada da cidade, com 3 vítimas. Pronta para a festa, lamentei mas não prestei maior atenção.  

Ao chegar na casa do meu pai, uma das minhas irmãs me perguntou: “Você sabe quem são as vítimas do acidente?”. Respondi que não. Ela segurou minha mão, olhou nos meus olhos e disse a frase que nunca mais esquecerei:
“Foi a Paula Moresco, o nenê dela e o marido. Sinto muito”.
E senti o chão sumir debaixo dos meus pés. 

Era uma tarde de segunda-feira. Paula, o marido Zhé e o filhinho deles, José Bento, de 3 anos, voltavam de uma viagem de carro à Bolívia. Tinham levado o pequeno para a família dele conhecer. Era o finalzinho daquelas férias tão esperadas pela família, eles estavam vivendo o melhor momento, reformando a casa, crescendo na profissão, realizando sonhos. Quase chegando em Campo Grande, numa curva, o acidente aconteceu. Os três partiram desse plano na hora.

Me sentindo completamente perdida, pedi um carro e fui para o único lugar que faria sentido ir: a casa da Gilda, mãe da Paula. Mas para você entender o que isso significa, vamos voltar 11 anos no tempo, até o dia em que entrei naquela casa para falar com a mãe da minha nova amiga, que faria os vestidos das damas de honra do meu casamento. Naquela casa nasceu uma amizade sincera que uniu aquela mulher, a filha dela e eu. 

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Nós não sabíamos, mas precisaríamos muito uma da outra para enfrentar tudo o que viria nos anos seguintes – separação, doença, divórcio, perda de bebê, depressão, hospital. Também viveríamos muita alegria, recomeços, sorrisos, outro casamento, outro bebê, o renascer da esperança. A vida tinha nos reunido para dividirmos muita coisa e aprendermos juntas. 

Quando cheguei na casa, já vi o movimento diferente. O irmão da Paula me recebeu e convidou a entrar. Entrei naquela sala em que tanto rimos juntas, tanto nos consolamos, tantos planos fizemos, e encontrei uma Gilda com o olhar distante, rodeada de gente. Assim que ela me viu, nos abraçamos e desabamos juntas naquele choro de dor, de incompreensão. A enormidade da tragédia de perder a filha, o neto e o genro, era demais para qualquer pessoa se colocar no lugar. Dentro de mim começou a nascer a revolta, a indignação, mas dentro da Gilda, não. A primeira frase que ela me disse, foi para me consolar. Era isso o que Gilda estava fazendo: consolando as pessoas. 

– Pensa Jaque, que eles foram todos juntos. Nenhum deles suportaria ficar nesse mundo, se o outro tivesse partido. A Paula não aguentaria a dor de perder esse filho, nem esse marido, eles se amavam tanto. Pelo menos, estarão juntos na outra vida. 

Eu não soube o que responder.

A grande lição   

Ao longo desse um ano, Gilda me ensinou uma lição muito preciosa, que quero dividir com vocês, especialmente com você que é mãe, e conheceu a maior dor que um ser humano pode sentir: 

“A primeira coisa que passa pela cabeça da gente é não acreditar que aquilo seja verdade. Eu fiquei anestesiada na hora, mas não me revoltei, em nenhum momento. Era tão difícil acreditar, que eu queria ver eles, queria ir até o local do acidente, mas não me permitiram. No dia dos velórios, abracei muita gente, eu mais consolei do que fui consolada, e isso me dava forças”, conta Gilda Lima Godoy, de 64 anos.

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Perguntei a ela como lidar quando as datas importantes chegam – natal, ano novo, aniversários. Gilda conta que tem uma maneira muito particular de amainar o sofrimento: “Quando a dor vem muito forte eu faço uma oração por eles, lembro do sorriso deles, das conversas, e aquela dor já passa. A minha receita é lembrar de momentos felizes e rezar, enviar amor, dizer com o coração o quanto são amados. Aos que vêm a mim para me confortar, também ofereço conforto. Prefiro falar deles com amor, do que falar com dor”. 


“Revolta eu nunca tive. Nós não pertencemos uns aos outros, pertencemos a Deus, estamos aqui de passagem. Ele nos deu a vida, e também recolhe, na hora que for o momento. Temos que ter conhecimento e sabedoria para entender isso. Chegou a hora dos meus, e eles foram para o outro lado”. 

Em janeiro, 6 meses depois da tragédia, fui visitá-la e entrei naquela mesma sala. Na estante, fotos do pequeno Bento sorrindo, fotos do casamento tão sonhado da Paula e do Zhé, o casamento que fui madrinha e que a própria Gilda fez o vestido. Na parede, o filtro-dos-sonhos que a Paula teceu pessoalmente para decorar a cerimônia. Por toda parte, lembranças da família que se foi, vívidas. Para mim, elas tocaram na ferida, relembrando que eles não estão mais aqui. Para a Gilda, é uma maneira de mostrar que estão, sim. A presença deles segue viva na casa dela. 

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Naquele dia de janeiro, finalmente deixando o luto represado sair numa torrente de choro, no colo daquela mãe enlutada que sempre me tratou como filha, perguntei como é que ela suporta o nó na garganta de pensar que aqueles seres amados nunca mais serão abraçados. 

Naquela resposta, Gilda me ensinou a lição mais importante que aprendi nessa vida: 

“Sobreviver é minha maneira de honrar a memória deles. Minha filha, meu genro e meu neto não deixaram de existir, eles estão do outro lado, morando em outro lugar. Eles não gostariam de me ver chorando, arrastando correntes de dor. Tem dias que a saudade é insuportável, mas eu escolho não sofrer. A dor vai existir, mas o sofrimento é opcional. Eu escolhi honrar a vida dos meus filhos vivendo, amando e sorrindo. Eles me amaram tanto, é assim que eles gostariam de me ver. Vivendo.” 

Nós não somos preparados para o luto. A fé ajuda a acomodar os sentimentos, mas é preciso um nível superior de sabedoria para honrar a memória do ser amado que se foi, aproveitando a vida que nos resta. A depressão que já é companheira da nossa geração, é elevada à milésima potência pelo luto, mas como falar de depressão diante de uma pessoa que venceu o câncer duas vezes e perdeu a filha, o neto e o genro, mas decide continuar vivendo e buscando a felicidade como forma de manter vivo esse amor? 

Eu não sou mãe. Não posso imaginar que dor é essa que dilacera o coração de quem vê a ordem da vida se inverter, e enterra o ser a quem deu a vida. Para as mães que também perderam seus filhos, Gilda tem o abraço acolhedor pronto: 

“Nossos filhos não morreram, eles só passaram para o outro lado. Um dia, vamos estar juntos. Não podemos culpar ninguém. Quando chega a hora dos nossos filhos, eles irão embora, estão apenas finalizando a missão antes da gente”. 

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Paula, Bento e Gilda. (Foto: arquivo pessoal)

“Eu passei por inúmeras batalhas contra o câncer, mas não chegou a minha hora. Minha filha cuidou de mim, meu genro cuidou de mim, o Zé Bento pulava em cima da cama comigo, eu tomando alimentação pela sonda, ele subia na cama todo dia para me alegrar. A minha filha fez tudo por mim enquanto eu estava doente, e eu não fui porque não era minha hora. Quando chega a hora dos nossos filhos irem, de uma forma ou de outra, eles vão. Uns de forma mais agressiva, abrupta, outros de forma mais natural, mas é a hora deles, é o resgate deles. Então, não nos cabe blasfemar contra Deus ou contra alguém que tenha tirado a vida do seu filho. Cada um tem sua hora”, reforça.

Quando pergunto o que Gilda vê para o futuro, ela diz que não parou de sonhar em momento algum, mesmo nos dias mais difíceis: 

“Eu tenho um filho e dois netos, e uma ‘genra’ maravilhosa, e ainda quero que Deus me dê vida para ver meus netos se formarem. Quero viver, dançar, viajar, quero viver o amor. Quero ver meu filho bem-sucedido, quero uma vida longa e saudável, porque uma vida longa e doente não vale. Não estou em contagem regressiva para partir e encontrar meus filhos que se foram. Quero honrar o tempo que passamos juntos vivendo, aprendendo, vendo os amigos da minha filha vencendo, quero ser feliz até chegar a minha hora. Faço isso por eles”. 

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Gilda transformou a dor incalculável de perder a filha, o neto e o genro, em um motivo para acordar todos os dias e ser feliz, honrando a vida e o tempo que viveu com eles. As plantas que estavam na casa da Paula, hoje estão no jardim dela, que por incrível que pareça, está sempre florido. Em suas orações, todos os dias eles se encontram:

“Continuo amando, falando com eles, digo que aqui está tudo bem. Todos os dias eu escolho não sofrer. Saudade sim, amor sim, mas sofrimento, não. Porque eles estão logo ali, do outro lado, em um lugar que ainda não posso alcançar, mas sei que estão lá. Eu sei que vou encontrá-los um dia”, finaliza.

Paula levou com ela um pedaço de mim, e sempre que quero me afogar em autopiedade pela perda da minha amiga, penso na Gilda. Quem sou eu para choramingar minha dor, diante de uma mãe que decide sorrir para honrar a memória dos seus? 

Que a gente consiga alcançar esse nível de sabedoria para tudo que nos angustia. Se está no seu controle, resolva. Se não está, não cabe a você resolver. A vida é um borrão, tudo que hoje é, amanhã pode não ser. Estamos nesse caminho de passagem, e alguns, já passaram para o lado de lá. Se você acredita no reencontro ou não, se tem fé na vida eterna ou não, pouco importa. A sabedoria está em celebrar o amor e ser útil, para fazer valer sua caminhada sobre a face dessa Terra. 

Tem uma passagem de um livro que gosto muito, chamado “As Cinco Pessoas que Você Encontra no Céu” que diz que o céu de cada um, é um lugar que você amou em vida. No céu onde um dia vou encontrar a Paula, tem polenta com queijo, pantufas, batom vermelho, um sofá, Sex And The City na TV e um vinho barato para regar o riso.

Obrigada, Gilda.
E até breve, Paula.
Te amo.

* Em memória de Paula Alessandra de Godoy e Moresco Vargas, Zhé Manolinho Vargas e o pequeno da titia, José Bento Moresco Vargas. 

Este conteúdo reflete, apenas, a opinião do colunista Não Sou Obrigada, e não configura o pensamento editorial do Primeira Página.

Comentários (11)

  • Lindaura

    História linda, que Deus abençoe sempre a vida dela por ser essa mulher de fé, pois isso não é fácil para ninguém!

  • Israel Wilson

    Apesar da terrível perda de sua filha, neto e genro, saiba que a vida continua. Sua força em enfrentar essa dor é admirável. Lembre-se das memórias felizes, permita-se chorar e aceite o apoio dos entes queridos. A superação é um processo pessoal, sem prazos definidos, mas com o tempo, a dor se tornará mais suportável. A vida é um ciclo, e, mesmo diante de perdas profundas, há espaço para novos começos. Sua jornada de superação é um exemplo inspirador de amor e determinação.

  • Debora

    Que historia linda, que aprendizado…que um dia eu possa chegar a esse nível de resiliência se por uma dor dessas eu passar… Que Deus venha cada vez mais dar forças, ânimos pra Gilda….amei esse testemunho lindo de vida…

  • Venina Guerra

    É isso .. Gilda nos dando uma noção do que é a vida, ela é a força que muitos precisam ouvi-la.Forte abraço minha amiga Gilda…saudades de você.
    Venina Guerra.

  • Creidineia Rufina de arruda Nunes

    Uma história que nos dá força também só mãe de três rapazes e também tenho uma história p contar eagreditar que um dia vamos estar todos juntos também bem perdi meu filho caçula de 24 anos meu filho foi assassinato pelo ex marido da sua esposa vai fazer seis anos no dia 17 de dezembro 2018 nossa meu filho morreu no braço do meu marido com nove facada. O assasino foi preso e só ficou nove mês preso não tenho dinheiro p lutar p colocar esse assisino na cadeia ma não tenho dinheiro meup pagar e então me apego em todos os ensinamentos de superação essa história me ajudou má em agredita que um dia vou estar junto com meu filho pois sofro por não ter justiça ainda mas p quem não tem dinheiro p pagar pum advogado meu filho Tarcísio engly de arruda 24anos deixou um filho João Vinicius meu filho morreu no braço do pairou a única frase do meu filho foi que cuidasse de seu filho parecia um sonho tudo aquilo hoje só não consigo escutar música como dói perder um filho é agente tem que aprender com a dor e fortalecer com histórias como essas . Me chamoCleide pedir fazer uma matéria sobre porque quem não tem dinheiro não tem justiça

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