Vamos trocar os papéis? Carrego o saco de cimento se você fizer tudo o que eu faço
Homens que usam a desculpa da força física para diminuir mulheres precisam voltar 4.560 casas no Jogo da Vida. O trabalho doméstico é mil vezes mais pesado porque você jamais descansa.
A jornada da feminista é ingrata: você quer ajudar a esclarecer as pessoas com ideias formadas noutros tempos e tornar o mundo um lugar menos injusto para as mulheres, mas é impressionante o número de criaturas que não querem desapegar de seus pensamentos antigos. “Ah mas é que eu fui criado assim”, me diz o cara de 35 anos.
Recebi um comentário emblemático em certo vídeo que postei no tiktok e fiz questão de respondê-lo. Um cara, obviamente com perfil fake (nunca falha, são sempre covardes demais para assumirem publicamente as barbaridades que dizem) veio com uma máxima que eu particularmente adoro: a teoria furada do saco de cimento.

“Vou dar um saco de cimento e 1 pneu de caminhão pra vc trocar. Querem igualdade só no que é fácil” comentou o Hulk, baluarte da força. Um cara que, aposto minha coleção de sapatos, trabalha de camiseta polo bordada e nunca na vida carregou um saco de cimento. O vídeo viralizou, as mulheres foram reforçar a mensagem no comentário dele e o rapazola denunciou meu vídeo por bullying e assédio. Eu postaria aqui para você tirar suas próprias conclusões, se meu vídeo respondendo um comentário misógino não tivesse sido banido da plataforma como se a agressora fosse eu. Nada de novo sob o sol das mulheres que assumem a missão de transformar esse oceano de chorume em algo útil para as meninas no futuro.
Aos homens que usam o argumento do trabalho braçal para se vitimizar quando mulheres falam de igualdade, eu faço uma proposta: vamos trocar os papéis?
Eu sei trocar pneu sozinha e puxo uns 70 kg de ferro na academia, então tá tranquilo carregar saco de cimento. Agora, vamos falar sobre o seu papel?
Seu dia vai começar logo cedo, quando eu sujar o banheiro inteiro, comer, deixar a louça na mesa e sair de casa para carregar meu cimento esperando que você limpe tudo até eu chegar. Você deve fazer comida para me alimentar e eu vou botar defeito nela. Depois de comer, vou deixar tudo onde está, deitar enquanto você limpa minha sujeira e depois voltar para o segundo turno. Ao final do dia quando chegar em casa, direi que sua companhia não me agrada e vou jogar futebol com meus amigos ou me embebedar em algum boteco.
Quando voltar fedendo a cachaça, vou te acordar e exigir que você cumpra suas obrigações de marido comigo, mesmo que não queira. Depois, vou reclamar que seu corpo está velho, caído, que você está careca e barrigudo, e que vou procurar na rua o que não encontro em casa. No dia seguinte, antes de tudo recomeçar, vou reclamar que odeio minha vida e que você me faz infeliz, antes de exigir que você me sirva, me alimente, limpe minha bagunça e me trate como uma criança durante mais um dia.
“Mas você está generalizando, na minha casa eu ajudo com tarefas domésticas”. Que ótimo, isso faz de você um adulto funcional. Voltemos a falar sobre a realidade da maior parte dos lares brasileiros em que mulheres são as únicas responsáveis por toda a engenharia da casa.
O trabalho doméstico é mil vezes mais pesado, exige força física sim, não tem fim de semana, feriado, férias e não é sequer remunerado – em troca do cuidado com todos da casa você terá comida e despesas básicas pagas a troco de muita reclamação. Experimente pedir um dinheiro extra para ir ao salão fazer luzes no cabelo? Ficar mais bonita para quê? Para quem?
Homens que usam a desculpa da força física para diminuir mulheres precisam voltar 4.560 casas no Jogo da Vida. Tem muita mulher trabalhando em obra e borracharia, assim como tem homem que cuida dos serviços domésticos para a esposa trabalhar fora. O que não pode é misturar alhos com bugalhos de forma tão estúpida querendo nivelar tudo pela capacidade de… carregar peso?
A busca por igualdade é exatamente sobre isso. Toda vez que preciso trocar um pneu eu simplesmente faço e não acho grande coisa, não é a ocasião mais extraordinária da vida. Se um homem precisa cuidar da casa e dos filhos por uma semana, será que vai sentir o mesmo? Será que existe serviço de homem e de mulher?
Diminuir o feminino é um costume horrível, que a gente tem a obrigação de se inquietar e combater. Não precisa me poupar porque não tenho a mesma compleição física que você, assim como não preciso te poupar de serviços domésticos como se você fosse incapaz. Equidade é colocar oportunidades, resultados e julgamentos no mesmo patamar. Lavar a louça em casa não te fará mais feminino e trocar a resistência do chuveiro não me fará mais masculina.
Enquanto perpetuarmos esses estereótipos bobos sobre serviço de homem e de mulher, a conversa principal sobre equilíbrio vai acabar maquiada pela vontade infantil de reviver eternamente os debates da quinta série. Esse tipo de discussão é apenas uma enorme e irritante perda de tempo, e nenhum de nós está com espaço livre na agenda para ensinar o básico a adultos funcionais.