Segunda chance
Confira o conto desta sexta-feira, 3 de fevereiro
O rapaz estava revoltado. Motivo? Nenhum. Mas a revolta nos atinge sem pedir licença ou apresentar justificativas. Sinais dos tempos. Tempos malucos em que ficamos tristes sem razão, brigamos com conhecidos para defender quem não conhecemos de perto, fazemos besteiras por pura inconsequência.
Acendeu o cachimbo com a pedra que curava tudo. A curto prazo, claro. Era a saída pra um mundo onde não há dor, não há sofrimento, não há razão de ser pra existir na mente de um ser racional.
A fumaça que entra no corpo, dizem, afeta o cérebro. Mas no caso dele, o coração era o alvo. Um coração que não bate com o amor que costumamos ver nas metáforas. É amargo, egoísta, sem condição nenhuma de bombear o sangue que garante vida a este ser deplorável.
Conseguiu, ninguém sabe como, uma companheira. Alguém para aguentar seus desmandos, sua falta de iniciativa, sua loucura, sua maldade.
Ele gostava da companhia dela. Não por afeto. Mas porque tinha sexo quando quisesse. Sim, quando quisesse. A moça não precisava desejar. Estava ali para servi-lo. Ele garantia o sustento com a venda do produto que agora enchia sua cabeça de química nociva.
E ela? Por que estava com ele? Porque ele aceitava viver numa casa imunda. Ela nunca gostou de afazeres domésticos. Não nasceu pra isso, dizia. Também não tinha nascido para ser mãe.
“Por que raios não exigi camisinha daquele idiota?”
Nasceu uma menina linda, antagonista a tudo o que a mulher vazia e o namorado desprezível representavam para esse mundo. Era sorridente, inocente, dependente. Nasceu enganada pelo destino. Era assim ser criança? Levar bronca por brincar. Apanhar por fazer algo que lhe parecia incrível como pintar de felicidade a parede branca e sem graça da sala. Ter suas partes íntimas tocadas, manipuladas, invadidas. Que brincadeira mais dolorosa é essa que o tio faz? E por que mamãe deixa? Por que apanho mais se chorar de dor?
Um dia, a menina não aguentou segurar as lágrimas. Não se recorda o que aconteceu. Ou seu cérebro – que não era invadido por química venenosa – foi inteligente o bastante para desligar a memória por um tempo.
Poderia ter ficado assim, nesse conforto do esquecimento. Mas a pancada foi tão grande e o barulho da coluna se quebrando, tão alto, que o mecanismo voltou a funcionar. Mecanismo de defesa de uma indefesa. Os gritos só fizeram o agressor ficar mais bravo. A mãe não estava. Pra quem pedir socorro? Ele olhava com olhos apertados, o nariz estranho, retorcido, e a boca levantada pra cima mostrando parte dos dentes amarelados. Ela conhecia essa cara. E não gostava dela. No seu mundinho de criança de 2 anos, chamava aquele rosto raivoso de máscara da maldade. E quando ele a vestia, só parava quando cansava as mãos. Ela não tinha a carne tão dura assim. Mas não devia ser legal pra ele ficar batendo os nós dos dedos nos seus ossinhos.
“Coitado do tio”.
Geralmente, ele ficava assim uns minutos. Aí tirava aquela carranca feia. Porque ela o ajudava. Apesar da dor, segurava o choro. Aprendeu desde mais novinha a enganar a si mesma. Mas desta vez estava doendo demais. Alguma coisa nas costas. Ela sentia que estava ficando difícil respirar. Nem dava pra fazer aquele exercício que a mamãe ensinara quando o padrasto batia nela mais forte. Respira pelo nariz, solta pela boca.
“Vai passar, querida, vai passar.”
“Não tá passando. Não dá pra puxar o ar, mamãe. Cadê você? Puxa o ar pra mim. A máscara tá ficando embaçada. Tá ficando tudo escuro. Tá tudo silencioso.”
O homem viu a menina parar de se mexer. Ele olhou aquele corpinho que não ia crescer mais. Sem sentimento algum. Como se olhasse um brinquedo que parou de funcionar. Brinquedo dele. Acendeu de novo o cachimbo e sentiu paz na atrocidade.
Dois minutos depois, ele escutou um barulho enorme na sala. Como se o teto tivesse desabado. Apoiou-se na cama e levantou-se. Cambaleando, foi escorando no guarda-roupa de porta quebrada e no batente da porta, que já não existia depois que ele a arrombou para invadir o quarto e ensinar uma lição para a companheira.
Na sala, parado ao lado da mesinha cheia de bitucas de cigarro, uma figura de cerca de dois metros de altura, alva, quase transparente, o aguardava. O anjo disse o nome dele.
O rapaz sentiu medo pela primeira vez na vida adulta. A criatura sobrenatural foi em sua direção. Ele tentou virar o corpo para fugir daquilo. Suas pernas burras não obedeceram. A mão gingante do anjo se aproximou de seu peito. O dedo indicador dele apontou para o quarto. Sua mente foi invadida por um flashback e ele reviu, em detalhes, o que fizera com a menina. Não só nos minutos anteriores. Mas por toda a breve e sofrida vida dela.
O anjo aguardou, esperando algum tipo de arrependimento.
Só sentiu pavor.
O ser celestial, então, abraçou o homem. Envolveu todo o corpo do humano que parecia franzino perto do gigante com seus braços fortes. A cabeça do assassino foi puxada contra o peito duro, de um concreto abstrato, do anjo.
O rapaz sufocou. Não conseguia respirar. Nem mexer um único músculo pra se soltar. Parecia que tinha fumado a pedra toda e desabado sem forças.
Desmaiou.
Acordou com seu choro. Era um choro fino, agudo. Desesperado. Ao abrir os olhos, viu o teto e sentiu um gosto metálico na boca. Metálico e salgado. Levantou-se, de joelhos na cama. Era o quarto da menina. Mas os móveis em volta pareciam maiores. Olhou no espelho grudado na parede. Aquele que tinha uma rachadura na ponta de quando tinha atirado a pestinha de cabeça pra que ela parasse de pedir sorvete. O que viu o fez estremecer. Ele era a criança. Estava no corpo dela. Levou a mão ao rosto pra confirmar que o sangue escorria mesmo por seu pequeno nariz como mostrava o reflexo. Viu que não era sonho. E começou a chorar. De dor. Tudo no rosto doía.
Foi quando escutou a própria voz. A de quando era um jovem idiota abusador de crianças.
“Eu não falei pra você dormir?!”
Então, o viu entrar. Ele olhava com olhos apertados, o nariz estranho, retorcido, e a boca levantada pra cima mostrando parte dos dentes amarelados. Ele conhecia essa cara. E achava que gostava dela. Mas visto, assim, de baixo pra cima, era como se ele vestisse uma máscara de maldade. E como sentiu medo dela se aproximando. Como quis gritar alto quando a mão levantada se fechou em sua direção.
Tudo se apagou.
Quando abriu novamente os olhos, estava balançando nos braços de um homem. Que sensação gostosa. Ele fazia carinho em seus cabelos. Os olhos, amortecidos pelo soninho, ainda não conseguiam focar direito. Espreguiçou, bocejou, levou as mãozinhas fofas aos olhinhos e os coçou com meiguice. O movimentou rendeu um beijo na testa do adulto. E um comentário.
“Você é uma princesa.”
Que efeito teve. Sentiu seu cérebro se inundar com uma química boa. Transbordou, desceu pelo rosto e esticou sua boquinha. Estava sorrindo! Desceu mais e fez o coração avisar: eu amo esse cara!
Abriu os olhos e viu seu rosto antigo. Mas diferente. Sem máscara da maldade. Radiante, feliz. Com reciprocidade no olhar.
A mãe da menina entrou no quarto. Ele nunca a tinha visto tão linda. Ou tinha quando se conheceram, mas esqueceu. Ela abraçou os dois. Chamou a coisinha no colo de meu anjo. E fez cócegas na barriga.
Por que nunca fiz isso nela?
“Vamos.” — disse a mãe.
E foram. Na cadeirinha do carro, segura, cantou com os pais as musiquinhas que ele odiava ouvir. Riu demais com a história do sapo com chulé.
“Por que não cantei com ela?”
Na volta, pararam na praça. A mãe estendeu uma toalha e eles sentaram olhando as pessoas. Um cachorrinho acompanhado do tutor se engraçou com a menina. E eles brincaram.
“Por que não adotei um cachorrinho pra ela? Será que ela não precisava apenas de um amigo pra dividir o tempo?”
Foram embora. O homem deu banho na menina. Sem conotação sexual alguma. Apenas preocupação com a higiene dela e aproveitar o momento de interação entre um adulto responsável e uma criança adorável. Um banho de carinho. De cuidado. O padrasto que agora habitava o corpo da menininha teve vontade de gritar.
“Meu Deus! Como consegui abusar dela? Como? Como sentir prazer sexual com uma menininha tão frágil? Por que? Por que eu fiz tudo isso com ela?”
Mas o que saiu da boquinha feliz foi outra frase.
“ Eu te amo, tio.”
Na data de aniversário de 3 anos da menina, ele pôde escolher o tema, o sabor do bolo, convidar os amiguinhos da escolinha que passou a frequentar. A festa foi na casa do pai biológico. O tio e ele eram amigos. Rolava um ciuminho saudável. Na prática, tinha dois pais. E ele era amado todos os dias, independentemente de onde estivesse. Estava viciado nessa nova droga chamada atenção.
Chegou a hora dos parabéns. Pai, tio e mãe do seu lado. A menina olhou para o padrasto e fez um desejo. Queria continuar a viver assim pra sempre.
E assoprou a vela com força.
Tudo se apagou.
O assassino da criança abriu os olhos e sentiu uma leve dor nos dedos. O cachimbo quente caiu sobre o polegar e o médio quando ele desmaiou.
Olhou na cama e viu o corpinho da menina. Pálido. A boca aberta. Morta. Pelas mãos dele.
As lembranças da vida perfeita o atingiram como um soco no estômago. Ele vomitou. E chorou.
“Como queria uma segunda chance.”
O anjo apareceu novamente. Desta vez, na porta do quarto. Ele sorria. Mas não pra ele. Viu o espírito da menininha se levantar, pular da cama e correr para o gigante. Ele a abraçou gentilmente. Passou a mão em seu cabelo. E levantou-se de mão dada com ela. Virou as costas e disse:
“Agora é com você.”
Ao sair do campo de visão, o homem voltou a chorar.
A máscara da maldade estava a quatro passos dele. Esta, ele nunca tinha visto. As garras erguidas prontas para transformar a vida dele num inferno.
“A partir de agora, estarei com você.” Foi o que a voz disse primeiro.
“Nesse mundo, não existe segunda chance.” Completou.
“Aqui se faz, aqui se paga.”
….
Esse texto ficcional é dedicado à memória da menina Sophia, de 2 anos, que teve a coluna quebrada e morreu de hemorragia interna com suspeita de estupro pelo namorado da mãe, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Até o fechamento dessa coluna, o casal estava preso e aguardava a conclusão do inquérito policial. Nosso desejo é que haja uma apuração justa dos fatos. E que Sophia, onde estiver, tenha uma segunda chance de ser amada. Vá em paz, anjinho.