Thriller – um filme cruel
Obra sueca de 1973 chega ao streaming para contar a vingança de jovem forçada a se prostituir. O clássico, infelizmente, ainda é atual
Um dos assuntos que mais me assustam e, acredito, deve suscitar o mesmo sentimento nos leitores, é o abuso sexual.
O cinema lida com esse tema há tempos.

A Vingança de Jennifer é um clássico. De 1978, o filme conta a história de uma escritora que se refugia para o interior dos Estados Unidos em busca de paz e tranquilidade para desenvolver sua obra.
Uns idiotas aparecem e resolvem fazer da moça um brinquedo sexual. Cenas fortes ficaram na minha memória e até hoje lembrar da personagem assustada, totalmente rendida, implorando que não aguenta mais de dor enquanto os homens se divertem, é algo que me traz grande incômodo.
Talvez por isso, nos meus dois livros, o estupro esteja presente como um elemento de terror.
Muitos não viram este filme, mas sim, sua refilmagem, que ganhou o título de Doce Vingança (2010) e se estendeu por mais três continuações descartáveis.
Em todos, a protagonista sofre demais até quase morrer e, então, como uma fênix, se transforma numa ninja invencível e parte para a matança dos que a machucaram. E, claro, em mortes estilizadas que garantem um grandíssimo “BEM FEITO” para os estupradores.
Como isso conseguisse apagar toda a dor, vergonha, sentimento equivocado de culpa, medo, nojo, trauma que a violência sexual tatua na mente das vítimas.
Bela Vingança (2020) catapultou o tema a outro patamar. Com cinco indicações ao Oscar fez o mundo analisar a necessidade de não enxergar com normalidade o fato de homens se aproveitarem de mulheres embriagadas para suas satisfações sexuais. O filme, no entanto, diverge dos demais quanto ao exploitation.
O que é isso? Empresto aqui o conhecimento de Gabriel Paixão. Em um vasto artigo sobre o tema no site Boca do Inferno, ele resume:
“A primeira coisa a se esclarecer é o obvio: o que é exatamente um exploitation, ou, da forma literal traduzida um filme “explorativo“? Colocando de uma forma simples são filmes independentes realizados sem interferência de estúdios produzidos para: 1) explorar as possibilidades financeiras de um gênero popular; 2) responder rapidamente a um interesse atual em um tópico contemporâneo; e/ou 3) ganhar em cima de um sucesso comercial recente. Menos prejudicial do que parece, portanto, o termo se refere a explorar o interesse da audiência em um tema ou colocando em palavras mais pomposas, para “suprir a demanda“.”
Neste mês, a Darkflix+ trouxe um outro expoente deste gênero: Thriller – Um filme cruel.
O título em português resume muito o que é essa película sueca de 1973 que foi banida da Inglaterra devido à violência e as descartáveis cenas de sexo explícito (são 3, feitas com dublês). Talvez o diretor Bo Arne Vibenius tenha preferido mantê-las no corte final para aumentar o impacto nos espectadores (lembrando que a película foi exibida há mais de cinco décadas).
Uma menina de 6 anos brinca alegremente com um idoso da cidade. Ele tem problemas mentais e, até, então, sempre foi inofensivo.
Mas, do nada, ele acaba violentando a menina.
O trauma se reflete numa sequela física e Madeline (Christina Lindberg) não consegue mais falar.
Cresce traumatizada com os pais numa fazendola.
Certo dia, o pai permite que ela vá se divertir na cidade. Ela se atrasa e perde o ônibus.
Um desconhecido, Tony (Heinz Hopf), aparece num carro novo e possante oferecendo uma carona.
A carona vira um jantar num restaurante chique.
O jantar, um convite para um último drinque na casa dele.
E, pronto, o gole vai levá-la ao inferno.
A bebida estava “batizada” e Madeline logo desmaia.
O rapaz dopou a garota e a mantém em cárcere privado com uma estratégia terrível.
Ela vai recebendo duas doses diárias de heroína até ficar completamente dependente da droga.
Se fugir, vai acabar voltando pela dependência ou caçada por capangas.
E o que Tony quer com ela?
Transformá-la em uma máquina de fazer dinheiro através de seu corpo.
A jovem é obrigada a se prostituir.
Dentro do quarto onde é mantida, ela aguenta todo tipo de humilhação, sob pena de ser torturada.
O filme é um cult. Adorado por ninguém mais, ninguém menos que Quentin Tarantino. Saiu de Thriller e sua protagonista a inspiração para a personagem Ellie Driver de Kill Bill (2003).
Sim, ela é a loira assassina de tapa-olho vivida por Daryl Hannah.
O mesmo acessório está em Madeline no filme sueco. E a cena que precede a necessidade de seu uso é de quebrar os dentes de tanta tensão.
Apesar de ter sido considerado de mau gosto ao ser lançado, o tempo se encarregou de valorizar o filme.
Imaginem, Bo Arne Vibenius era pupilo de Ingmar Bergman – só um dos cineastas mais brilhantes da história do cinema. E aceitou fazer Thriller porque precisava de dinheiro para pagar dívidas de sua produção anterior.
Foi deserdado pelo mestre. Mas aplaudido até hoje pelos fãs de terror.
Fez da vingança um ritual lento, frio e que dá uma porrada em quem está na mira de Madeline e na tela.
A moça frágil que não fala uma palavra sequer durante todo o filme investe o dinheiro que ganha com a prostituição para se livrar de seu tormento.
Ao contrário de Doce Vingança ou Jennifer, aqui, Bo Arne mostra a lentidão dos preparativos. São aulas de artes marciais, de pilotagem de fuga, de tiro ao alvo.
A pobre camponesa – que teve a inocência e a humanidade destroçadas por clientes homens e mulheres — se transformando numa máquina com o único objetivo de eliminar os que a exploram.
As cenas da época podem até ser consideradas amadoras por quem já entrou no cinema do terror sob as maravilhas do CGI nos efeitos especiais.
Mas a câmera lenta idealizada pelo diretor sueco foi uma das inspirações para um marco dos efeitos visuais: Matrix (1999).
São muitos os motivos pelos quais vale conhecer esse filme cruel.
E um deles não passa pela capacidade técnica dos profissionais do cinema. Sejam de agora ou de 50 anos atrás.
Mas sim sobre o tema. Que, infelizmente, continua atual.
O Som da Liberdade mostrou isso no ano passado. Jim Caviezel estava mais para um Rambo que se infiltra na floresta para resgatar uma menininha das mãos de um traficante. Mas o filme dirigido por Mel Gibson, apesar do roteiro fantasioso, é baseado na vida de Tim Ballard. um ex-agente do governo americano responsável por resgatar crianças vítimas do tráfico sexual na Colômbia.
Isso mostra uma vida cruel.
Que não para de produzir vilões.
No mesmo dia em que escrevo essa coluna, em Bataguassu, cidade de pouco mais de 20 mil habitantes, quase na divisa entre Mato Groso do Sul e São Paulo, a justiça analisa um suposto esquema de exploração sexual. Pela denúncia, vítimas de 14 anos de idade eram estupradas por empresários, servidores e até policiais.
Será que algum dos clientes realmente acredita que essas meninas estavam ali por vontade própria?
Acho que está faltando a eles assistirem a mais filmes como os descritos aqui.
E à Justiça que possa fazer o papel de Madeline, de Tim Ballard, de Jennifer, como deve ser feito.
Não numa vingança sangrenta. Isso fica pra ficção.
Mas numa sentença justa, que proteja as vítimas, afaste os criminosos da sociedade e mostre que não há tolerância para um comportamento tão hediondo quanto esse.
Nem hoje, nem nunca.
Nem para pobre, nem para rico.
Nem para desconhecido, nem para influente.
Chega desse terror na vida real.