Da cadeia ao caixão, vida no crime é sem valor
Assassinatos cometidos dentro de ala disciplinar em presídio de Campo Grande comprovam artifício de tentar simular suicídios
É dolorosa a condição da mãe ao ver o filho se embrenhar no crime, repetidas vezes, invariavelmente em escala progressiva de gravidade. É inegável o prejuízo emocional, qual seja a história familiar.
Imagine para a mãe que, depois do filho encarcerado, recebe de volta um cadáver, entregue pelo sistema prisional.

Aconteceu exatamente isso com a genitora de Carlos Quevedo da Silva, uma auxiliar de serviços gerais de 59 anos. “Carlinhos” foi assassinado aos 31 anos, em 2022, dentro do IPCG (Instituto Penal de Campo Grande), no complexo do Jardim Noroeste, na saída para Três Lagoas, ladeado por outras quatro unidades onde vivem condenados ou quem espera por julgamento.
No dia 26 de julho de 2022, funcionários da penitenciária encontraram “Carlinhos” sem vida em cela disciplinar. A descoberta da morte ocorreu durante o “confere” dos policiais penais, nas primeiras horas do expediente.
Dois colegas de cárcere confessaram a morte, de forma espontânea. Disseram ter sufocado “Carlinhos” até o último respiro, durante uma briga.
A dupla ainda tentou simular suicídio, manobra que não é incomum no ambiente prisional, como esta coluna vai tratar mais à frente.
“Conforme se nota no exame cadavérico do Imol [Instituto de Medicina e Odontologia Legal), o motivo da morte se deu em decorrência de asfixia mecânica por constrição externa do pescoço, devido a estrangulamento”, informa peça processual sobre o assassinato.
Inconformada, a mãe foi à Justiça, pedindo a responsabilização do estado pelo fim violento do rapaz.
“Um dos mais dolorosos dissabores da Sra ——-, ainda hoje, é saber que a causa da morte do seu filho se deu por conta da omissão das reclamadas, vez que era que o mesmo era jovem de 31 anos e saudável.”
Petição à Justiça
Na sequência, a petição diz que “Carlinhos” trabalhava para ajudar nas despesas domésticas.

“Porém por um simples deslize foi quando envolveu em más companhias sendo pego com entorpecentes e indo parar preso.”
Petição à Justiça
Tal alegação pode ser interpretada como “licença poética” do olhar de mãe – ou estratégia jurídica – já que Carlos Quevedo da Silva tinha longo histórico de infrações à lei.
A primeira vez, na maioridade, foi aos 20 anos, apurou a Capivara Criminal. No decorrer dos anos, as detenções se seguiram, por roubo, furto, tráfico.
“Carlinhos” ia e vinha da prisão desde o fim da adolescência.
Ficha criminal à parte, estava sob tutela do poder público para cumprir a reprimenda imposta pelo Judiciário.
Tinha sido capturado em agosto de 2021 pela Denar (Delegacia Especializada de Repressão a Narcóticos) vendendo cocaína no Jardim Tijuca.Menos de um ano depois, pereceu no alojamento do presídio.
“Vemos que o Estado tem o dever de assegurar aos presos o respeito à integridade física e moral, sob pena de responsabilização civil pelos danos morais causados em razão da violação dos direitos inerentes à dignidade da pessoa humana”, cita a representação da família de Carlos Quevedo da Silva, em referência à LEP (Lei de Execuções Penais).
O que diz a LEP:
- Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.
Parágrafo único. A assistência estende-se ao egresso. - Art. 11. A assistência será:
I – material;
II – à saúde;
III -jurídica;
IV – educacional;
V – social;
VI – religiosa.
O pedido da mãe
A indenização solicitada foi quantificada em R$ 150 mil por danos morais, sob alegação de que, além de perder o filho – descrito como um companheiro e ajudador na questão financeira – a auxiliar de serviços gerais passou a fazer tratamento para a saúde mental, com uso de medicações específicas.
O custo, então, seria emocional e financeiro, para comprar os remédios.
Anotou-se, ademais, que, de um dia para o outro, teve de desembolsar R$ 480 com o funeral, sendo solicitada a reposição do dano material.
A palavra das autoridades
Réus na ação, o governo de Mato Grosso do Sul e a Agepen (Agência de Administração do Sistema Penitenciário) defenderam a ausência de responsabilidade pelo caso, “por não estar comprovado o nexo de causalidade, tendo o evento morte ocorrido por culpa de terceiro.”
Para os entes públicos, o homicídio do detento aconteceu por circunstâncias alheias ao dever de fiscalização estatal. Informaram não existirem relatos anteriores de ameaças contra a vítima, “de modo que não havia necessidade de proteção extra.”
Tanto o preso morto quanto os assassinos confessos foram parar no mesmo lugar como punição por problemas na cela original.
Sentença
“No caso em tela, resta incontroverso que a vítima Carlos Quevedo da Silva, filho da requerente, faleceu enquanto custodiado no Instituto Penal de Campo Grande – IPCG – de forma não natural e violenta, como se denota dos documentos de fls. 22-25, laudo de exame de corpo e delito, e certidão de óbito de fl. 21, que indicam que a vítima foi assassinada por estrangulamento”, entendeu o juiz Marcelo Andrade Campos Silva, em sentença do dia 4 de setembro de 2023.

Em resposta a outro argumento apresentado pelo poder público – de que mãe e filho sequer tinham convivência, e portanto não haveria afetividade entre eles – o magistrado manifestou-se contrário a eventual afastamento entre mãe e filho como motivo para rejeitar o pedido indenizatório.
“Não é necessário que se comprove o vínculo de afetividade para pleitear indenização por danos morais reflexos, sendo que o estreitamento dos laços deve ser considerado somente para a fixação do quantum indenizatório”, escreveu.
“De consequência, o simples fato do evento ter acontecido no interior do estabelecimento prisional, onde a vítima cumpria pena, por si só, leva ao reconhecimento do nexo causal entre o resultado e a conduta estatal, cujo dever de zelar pelas boas condições dos presídios e pela integridade física dos detentos recai, evidentemente, sobre o REQUERIDO, uma vez que a ação de terceiro não afasta seu dever de proteção aos seus custodiados.”
Sentença judicial
Previsões da Constituição Federal são usadas para embasar a decisão favorável à reparação por danos provocados pelo estado ao cidadão em questão.
“Vislumbra-se que o ordenamento jurídico pátrio adotou a teoria do risco administrativo, pela qual o simples evento danoso causado por agente estatal (comissiva ou omissivamente) leva ao dever de indenizar, sempre que não se demonstre culpa por parte da vítima”, observa a decisão.
Na Constituição de 1988
Dois princípios da Carta Magna são citados na decisão:
1 – Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)(…)
§ 6º -As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
2 – No art.5°, XLIX, da Constituição Federal, dispõe que: é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.
Há preço para a vida?
Por fim, o magistrado sentenciou governo e Agepen ao pagamento de R$ 35 mil por danos morais. Por outro lado, rejeitou a reposição do valor gasto com o funeral à autora da ação.
Houve recurso dos réus, para derrubar a indenização, e da mãe do detento, para ampliar o montante.
Em julgamento recente, manteve-se a decisão de primeiro grau na íntegra.
“Ora, a situação narrada evidencia culpa do Estado, pois é claro que a omissão estatal colaborou com o evento danoso. Isso porque, a integridade física e moral do detento é responsabilidade do Estado, que deve zelar pela sua manutenção.”
Acórdão da 3ª Câmara Civel do TJMS
“Seria desrazoável presumir que o Estado, possuindo todo o aparato que detém, não possui a capacidade efetiva de evitar a ocorrência de homicídios no interior de seus estabelecimentos penais”, continua o acórdão, nome técnico das sentenças de segundo grau.
“Com efeito, entende-se que o valor de R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais) a título de danos morais se afigura razoável, conforme salientou o juízo a quo, sendo compatível com os objetivos da indenização por danos morais no sentido de compensar o indivíduo pelos prejuízos extrapatrimoniais suportados e punir o ofensor como forma de inibir a prática reiterada de condutas ilícitas, bem como sendo o valor incapaz de gerar enriquecimento sem causa à autora – parte hipossuficiente, e estando de acordo com a jurisprudência desta Corte em casos similares”.
Acordão da 3ª Câmara Civel do TJMS
Conforme o texto, apesar de ser impossível exercer a vigilância integral de cada detento, é necessário ao menos que a administração pública tenha condições de minimizar riscos.

“O apenado já exibia comportamento retraído, tendo os demais presos ouvidos pela comissão disciplinar, às fls. 307/309, informado que o de cujus ‘não era de conversa’, e, no entanto, não há qualquer informação de que lhe tenha sido designado pelo Estado acompanhamento psicológico, inobstante o isolamento social seja um forte indicativo de depressão”, assinala a decisão.
O entendimento da 3ª Câmara Cível do TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) está publicado no Diário da Justiça do dia 2 de maio de 2024.
Punição dos assassinos
Na mesma data, os detentos que admitiram o assassinato de “Carlinhos” foram levados a júri popular e condenados no Fórum de Campo Grande. Talisson da Silva Nascimento, 25 anos, e Vandelson Britez Machado, 23 anos, foram considerados culpados por homicídio qualificado pelo uso da asfixia.

Pegaram 13 anos de reclusão.
O inquérito da 3ª Delegacia de Policia Civil, base para a denúncia do MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul), relata que os presos estavam na cela 3 da ala disciplinar do presídio quando houve uma discussão.
Durante a fase de depoimentos à polícia, foi identificado que Tallisson tinha desavenças anteriores com Carlos Quevedo da Silva. Outro dado revelado é que a confusão envolveu um celular de posse dos internos.
No dia 25 de julho à noite ocorreu a discussão. A briga se agravou e Tallisson e Vandelson, segundo a confissão citada pela Polícia Civil, mataram o colega de cela. Ambos, consta do inquérito, aplicaram golpes “mata-leão” na vítima.
Na tentativa de se livrar da responsabilidade, colocaram o corpo em suspensão, com o objetivo de fazer parecer um suicídio. Usaram uma corda e prenderam “Carlinhos” em grades do alojamento.
Havia mais três presos no local, que não se envolveram, de acordo com as informações constantes da apuração.
A perícia e a investigação desmontaram a farsa do suicídio. O corpo foi descoberto pelo menos oito horas depois da briga fatal.

Outro caso
Suspeitas sobre simulação de suicídios no ambiente prisional são frequentes. O difícil é comprovar.
A menos que alguém confesse.
Os dois homens que admitiram o assassinato de Carlos Quevedo da Silva e um terceiro homem são réus em outro processo por homicídio, cujas circunstâncias são quase idênticas.
“No dia 13 de outubro de 2023, no período da manhã, no interior da cela 03, ala solário disciplinar, pavilhão 2, no Instituto Penal de Campo Grande, localizado na BR-262, Km 08, Bairro Jardim Noroeste, nesta Capital, os denunciados VANDELSON BRITEZ MACHADO, TALISSON DA SILVA NASCIMENTO, HIGOR EDUARDO FRANCO e terceiros não identificados, em unidade de desígnios, mediante asfixia, mataram a vítima Célio Aparecido da Silva Santos.”
Trecho de denúncia do MPMS
O crime ocorreu na mesma cela disciplinar e também houve tentativa de fazer parecer suicídio.
Célio, de 33 anos, foi espancado até a morte e depois pendurado, segundo consta dos autos.

Igualmente, a investigação descobriu que havia ocorrido um homicídio. Da mesma forma que no caso de “Carlinhos”, desavenças entre os presos foram apontadas como a motivação.
O interno assassinado se denominava como liderança no alojamento, traz o conteúdo da apuração.
Assim como no fato anterior, o cadáver só foi encontrado horas após o crime intramuros.
No andamento mais recente desse processo, foi marcada audiência para o dia 4 de junho deste ano, quando serão ouvidas as testemunhas de acusação.
Vidas parecidas
Toda a investigação jornalística para esta coluna leva a inflexões sobre quem morreu e quem matou nos casos tratados.
São homens jovens, com boa parte da vida dedicada à marginalidade.
Mortos e vivos citados no texto também compartilhavam uma realidade: se disseram tóxico dependentes quando foram capturados.
Dividem mais um aspecto: não chegaram a completar o ensino fundamental.
Para encerrar a Capivara Criminal deste domingo, cabe registrar uma dúvida presente do início ao fim da elaboração do material. Nos dois assassinatos com tentativa de simulação de suicídio, os autores identificados assumiram rapidamente a culpa, e de forma espontânea.
Seriam eles os verdadeiros autores ou apenas “laranjas”, agindo a mando de quem, de fato, tem o domínio da massa carcerária e decide quem vive e quem deixa de viver?