Capivara Criminal

R$ 2 mil pagam uma ofensa racista?

Em meio à polêmica sobre caso envolvendo criança negra de 4 anos que foi empurrada pelo pai de colega branco, a Capivara Criminal resgata episódio ocorrido em um dos espaços mais populares de Campo Grande

A Capivara Criminal deste domingo, 17 de março de 2024, é obra da sugestão de um leitor, mobilizado pelo debate mais quente nos últimos dias em Campo Grande. Falo da suspeita de motivação racista do episódio no qual um homem de 32 anos invadiu a fila dos alunos de uma escola infantil municipal para impedir o abraço de uma coleguinha no filho.

Reveja a cena:

(Vídeo: WhatsApp)


O menino é branco e a garota negra. Os dois têm quatro anos. O pai chegou a dar um safanão na criança no afã de separá-la do filho, em circunstâncias ainda em investigação.

Filmada, a cena ganhou a internet e o assunto tomou proporções nacionais, com manifestações de inúmeros órgãos de defesa dos direitos das pessoas pretas e de personalidades pedindo providências e, ademais, a inclusão do letramento racial no conteúdo das aulas.

No caso específico, a investigação está em andamento sob sigilo, aguardando a arrecadação de provas para definir um desfecho pela DEPCA (Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente) de Campo Grande.

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Fato é que o tema está latente. Por isso, o leitor entrou em contato com a coluna sugerindo o resgate de um episódio potencialmente racista ocorrido em Campo Grande, no ano 2017.

O caso ainda não teve conclusão, tampouco divulgação, embora envolva um ambiente bastante popular, a Feira Central, na rua Calógeras, região da antiga estação ferroviária, um dos nascedouros da cidade.

Ali, num espaço frequentado por muitos “nativos” e aonde é quase obrigatório levar os visitantes, como cartão de visitas da cidade, palavras preconceituosas foram disparadas contra um adolescente de 16 anos, preto e pobre, segundo os autos.

Ele havia sido contratado, informalmente, para a limpeza do teto e da tubulação de gás de uma das barracas de alimentos típicos.

No fim do dia, por volta das 19h, junto com mais três pessoas, foi ao banheiro usado apenas pelos funcionários para tomar banho, mas acabou sendo expulso.

Não apenas isso. Ouviu ofensas de cunho preconceituoso, como foi registrado na Polícia Civil.

“Macaco, preto, mendigo, favelado, sujo”

Trecho de processo judicial
Feira Central
Monumento que é uma das marcas da Feira Central de Campo Grande (Foto: Divulgação)

As palavras acima são atribuídas à dirigente máxima da associação que administra a Feira Central, Alvira Appel de Melos, 59 anos. Apesar de o fato ter ocorrido no dia 9 de janeiro de 2017, até hoje está correndo no Judiciário.

São sete anos à espera de um julgamento final, prova inequívoca do quanto é complexo o processamento das situações de preconceito de cor.

De lá para cá, houve tempo até de mudar a legislação.

Desde 2023, a lei brasileira trata a injúria racial como crime tão grave quanto o racismo. Ambos agora têm pena prevista de até cinco anos de reclusão.

A diferença entre injúria racial

  • Injúria racial é quando o preconceito é destinado a uma única pessoa, como por exemplo as ofensas racistas
  • Racismo é quando o crime é cometido contra a coletividade, como por exemplo negar acesso a pessoas negras a determinado serviço

A cronologia do caso da Feira Central

Informa o boletim de ocorrência da Polícia Civil feito na ocasião que Alvira Appel participava de uma reunião no dia dos fatos, na administração da Feira Central, com um advogado. Era uma terça-feira, dedicada às manutenções, assim como a segunda-feira, para aproveitar os dias sem público.

De onde estava, Alvira ouviu barulho nas proximidades, vindo da área onde ficam os banheiros exclusivos dos funcionários.

Quando foi até lá, a mulher que era a segunda na linha hierárquica da Afecetur (Associação da Feira Central, Cultural e Artística) estava repreendendo quatro indivíduos por usarem o local para banho, tratando-os como pessoas em situação de rua e invasoras do espaço.

Um dos argumentos usados, posteriormente, foi de que a feira tem muito problema com “noiados”, termo usado pelas envolvidas na situação, e volta e meia até a Guarda Municipal Metropolitana é chamada para retirá-los do local.

Naquela noite, Alvira, conforme descrito à polícia, acionou a segurança para tirar o grupo dali e fez as afirmações preconceituosas escritas acima.

Entre as quatro pessoas, havia uma mulher de 35 anos, a filha dela de 14 nos, o rapaz de 16 anos e um outro jovem, de idade não precisada.

Constrangidos, conforme alegaram, deixaram o local com as roupas sujas depois de um dia de trabalho na limpeza pesada, utilizando-se de produtos químicos. Relataram ter ficado em andaimes, sem uso de equipamentos de proteção.

O registro policial foi feito em torno de três dias depois, pela mulher de 35 anos. Ela contou à Polícia Civil o fato de todos terem sido contratados verbalmente pelo irmão dela, funcionário antigo de uma das barracas instaladas no centro comercialial.

Receberiam R$ 80,00 para limpar o telhado e as tubulações de gás.

Esse funcionário testemunhou durante o inquérito, confirmou ter ouvido palavras agressivas, mas não soube definir quem as proferiu.

Alvira, em seu depoimento na fase policial negou ter dito qualquer coisa racista. A subordinada dela deu versão parecida, assim como o então responsável pela portaria da feira.

Estabeleceu-se, pelo conteúdo ao qual a coluna teve acesso, uma dúvida sobre quem, entre as duas mulheres, proferiu as palavras de teor preconceituoso.

O inquérito demorou de janeiro de 2017 até quase o final de 2018 para ficar pronto. Foi relatado ao Judiciário declarando não haver como precisar a conduta delitiva apontada, a injúria racial.

O MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) devolveu a peça, pedindo mais providências, como por exemplo, a indagação ao adolescente de 16 anos sobre o interesse em representar com a dirigente da associação da feira, o que não tinha sido feito anteriormente.

Como ele manifestou o interesse em levar o caso à frente, a promotoria denunciou Alvira à Justiça.
Recebida pela 5ª Vara Criminal, a peça acusatória transformou-se em ação penal, ouvindo as testemunhas de um lado e de outro.

Em primeiro grau, em sentença de 2023, o juiz Wilson Peixoto Carvalho entendeu não haver indícios suficientes para condenar Alvira Appel.

“Diante do exposto e por tudo mais o que consta dos autos, julgo improcedente a denúncia, para o fim de absolver a acusada Alvira Appel Soares de Melos, com fundamento no art. 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.”

Sentença do juiz Waldir Peixoto

Na ótica do magistrado, não cabia condenação “apenas com base em meras conjecturas ou suposições”.

“Para a condenação há que existir provas nos autos da conduta imputada à denunciada e não simples indícios, como os que constam dos autos”, pontuou o juiz.

Teve crime, insistiu promotoria

Inconformado, o MPMS apelou da sentença no TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul), cuja entendimento foi o oposto do juiz de piso.

“Nota-se, portanto, as provas produzidas nos autos, notadamente pelo relato judicial da vítima e das testemunhas, autorizam a condenação de Alvira pela prática de injúria racial (art. 140, § 3º, do Código Penal, em sua redação à época dos fatos – 9 de janeiro de 2017), eis que evidenciado que a apelada se referiu à vítima de forma pejorativa, com intenção de ofendê-lo, direta e intencionalmente, e utilizando elementos de sua raça e cor”, decidiu o colegiado.

No acórdão dos desembargadores da 1ª Câmara Criminal, foi aplicada a pena mínima possível, de um ano de reclusão, além de 10 dias-multa pecuniária, o equivalente a cerca de R$ 500,00, considerando que cada dia de multa é de 1/30 avos do salário-mínimo vigente.

Também foi acatado o pedido do Ministério Público de indenização por danos morais para a vítima, estabelecido em R$ 2 mil, com juros de 1% ao mês e atualização pelo IPCA-E.

A palavra da ré?

Procurada pela Capivara Criminal, Alvira Appel de Melos informou não ter conhecimento sobre o andamento atual do processo.

Alvira Appel
Alvira Appel de Melos, dirigente da associação que administra a Feira Central (Foto: redes sociais)

Nas breves palavras ditas, citou lembrar de uma acusação em 2017, e afirmou que a fala não era dela. Solicitou um tempo para verificar a situação e retornar. Quando isso for feito, esse texto será atualizado.
A declaração coincide com as alegações feitas pela defesa ao longo da demanda judicial.

“Testemunhos contraditórios, imprecisos e não confiáveis, não podem ensejar uma condenação criminal, sob pena de violação ao princípio do in dubio pro reo.”

Peça da defesa de Alvira Appel de Melos no TJMS

“Além disso, também houve cerceamento de defesa, consistente na violação ao art. 209, § 1º, do Código de Processo Penal, uma vez que a defesa teve o pedido para oitiva de (nome omitido pela Capivara Criminal) indeferido, o qual possui informações que comprovariam a inocência da ré”, prosseguem os advogados.

Trata-se do funcionário responsável por contratar os serviços do grupo a testemunha, cuja oitiva na fase judicial não ocorreu, devido à dificuldade de localizá-lo, fazendo com que o MPMS pedisse a exclusão do depoimento.

Para os desembargadores, esse questionamento não tem sentido porque não foi feito anteriormente nas apelações, e só nos recursos contra o entendimento dos desembargadores, quando já não era mais cabível.

Contra o acórdão da 1ª Câmara Criminal já foram apresentados pelo menos dois recursos.

O mais recente, julgado pelo vice-presidente do TJMS, Dorival Pavan, foi rejeitado, mantendo a condenação.

“A súplica não comporta admissibilidade, pois rever o entendimento adotado por este Tribunal, para inverter o julgado e absolver a parte recorrente, implicaria, necessariamente, no reexame das premissas fáticas adotadas no acórdão e em nova análise do conjunto fático-probatório dos autos, o que é vedado no âmbito de Recurso Especial, por óbice da Súmula 7 4 do STJ”, escreveu o magistrado.


“Posto isso, com fundamento no artigo 1.030, V, do Código de Processo Civil inadmito o presente recurso especial interposto por Alvira Appel Soares de Melos.”

Decisão do desembargador Dorival Pavan


Por ser ré primária, Alvira poderá fazer transação penal e trocar a sentença de restrição de liberdade por restritiva de direitos.

Ainda cabe recurso no próprio TJMS e em cortes superiores.

No histórico da chefe da Feira Central já há duas décadas, consta outro episódio que foi parar na Justiça. Em 2008, ela teve um entrevero com guardas civis metropolitanos, sendo processada por desacato.

Acabou arquivado esse processo, depois de um acordo judicial, no tribunal de pequenas causas.

E o adolescente ofendido?

Ao buscar entender o que aconteceu com o jovem vítima das ofensas reconhecidas pelo TJMS, a Capivara Criminal descobriu uma realidade infelizmente comum para pessoas em condições miseráveis de vida, a ponto de aceitar qualquer tarefa por uns trocos.

Em uma das tentativas de notificá-lo da vitória na querela jurídica iniciada em 2017, a Justiça foi informada pela mãe de que o rapaz havia sumido de casa há mais de oito meses.

Vítima de racismo na Feira Central
Vitima de racismo na Feira Central de Campo Grande (Foto: reprodução de processo)


Acabou sendo encontrado na cadeia. Aos 24 anos, está preso no complexo da Gameleira e responde por crimes de receptação e tráfico de drogas.

É o puro suco do que acontece no Brasil com muita gente da população preta, pobre e periférica.

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Este conteúdo reflete, apenas, a opinião do colunista Capivara Criminal, e não configura o pensamento editorial do Primeira Página.

Comentários (1)

  • Brigida godoy

    É claro que não paga,nem dinheiro algum,a pessoa que agrediu devia ter trabalho comunitário em hospitais,para aprender a ser solidário