Stalking: como a perseguição que sofri ajudou a criar uma lei federal
Meses de agonia e sem respaldo da justiça para me defender de um maníaco. Não poderia esperar ser o próximo feminicídio para que alguém enxergasse, então fiz o que meu trabalho ensina: mobilizar a opinião pública
Essa é a primeira vez que a história da tortura psicológica que vivi será contada publicamente. Em 5 anos, só quem acompanhou minha silenciosa agonia lutando por justiça sabe sobre a maior vitória que carrego, e que sobrevivi à custa de um longo e caro tratamento psiquiátrico. Hoje vou contar a história de como descobri que a justiça brasileira era incapaz de me proteger de um psicopata desconhecido. Um homem que queria me matar e ameaçou fazer isso por anos a fio numa rede social, sem jamais ser silenciado.
Tudo começou em 2017. Vou descrever para vocês um perfil que hoje é bem comum de se encontrar nesse ambiente: um homem estúpido, obtuso, machista e carente, que via nas brigas e ofensas nas redes sociais a única maneira de chamar a atenção para sua medíocre existência. Esse homem resolveu transformar em alvo a moça da televisão, uma mulher solteira, jovem, de fala mansa e na cabeça dele, muito frágil. Foi assim que ele resolver destilar em mim todo o ódio que tinha de si próprio por meio de posts no facebook.

Eram mais de 20 posts por dia, todos sobre mim: me xingando, mentindo, incitando o ódio dos seus seguidores. Alguns homens comentavam achando engraçado, “mais um apaixonado pela apresentadora”, outros faziam coro, corajosos apenas atrás de um teclado.
Logo percebi que aquele não era um hater comum, estava lidando com um maluco sem qualquer brio social. Aquela certeza de impunidade que já vi ao noticiar incontáveis casos de violência contra a mulher. Fui imediatamente procurar a delegacia e levei uma pasta com cópias de tudo. A delegada, uma das pessoas mais incríveis que conheci nessa caminhada, na hora percebeu o perigo. Ao contrário do que o stalker imaginou, não fui chorar embaixo da cama. Tratei de processá-lo e coloquei o nome dele em cada espaço que a justiça permitia – só não sabia que eram tão poucos. Assim que recebeu o documento do processo, começou com as ameaças de morte.
De posse do meu endereço, ele começou a fazer check-in na porta do condomínio onde eu morava em diversos horários, e postava fotos da portaria. Como me via na TV, ele sabia quando eu estava trabalhando e todos os dias fazia check-in na porta da emissora, publicava fotos de diferentes pontos em volta. Usava fotos de armas como se fossem suas e dizia que iria me matar, que fulano amigo dele estava saindo da cadeia para me estuprar e acabar comigo antes de pagar o valor da indenização. Ele ameaçava a mim, minha irmã grávida, minha mãe e minha sobrinha de 7 anos.
Foram meses denunciando ao facebook e nada jamais foi feito. Durante todo esse tempo, eu tinha que sair do meu trabalho para ir à delegacia levar os prints atualizados, no intuito de fazer barulho suficiente para que, se ele me matasse antes da justiça enxergar, a polícia não fosse procurar meu ex ao invés do cara que me ameaçava de morte na rede social 20 vezes por dia.

Como estava processando-o, pude fazer um dos (inúmeros) boletins de ocorrência por coação no curso do processo, e foi assim que a justiça finalmente me viu. Uma audiência foi marcada e ele, obviamente, não foi. O machão de rede social é assim, agressivo no facebook mas se borra de medo de ser responsabilizado como um adulto.
No tempo que seria da audiência expliquei todo o caso para as poucas pessoas na sala, e foi aí que ouvi da boca de quem deveria me proteger, a frase que me tirou completamente do sério: “Para a justiça, isso é menos que uma briga de vizinho”. Foi assim que descobri que a lei não me protegeria de um perseguidor simplesmente porque eu não o conhecia.
Saí da audiência tão transtornada, tão indignada por tudo que vinha suportando que precisei entrar num banheiro do fórum correndo para vomitar. Não era possível que eu, contribuinte desde os 18 anos, precisaria conviver com a ameaça de um mentecapto, ter um surto e me matar porque havia uma brecha na lei. Procurei todo mundo: Secretaria de Segurança Pública, Delegacia-Geral de polícia, e ninguém podia fazer nada para me proteger porque a legislação brasileira não permitia.
Em 2017, se você fosse perseguida reiteradamente por um homem a quem conhecesse, com quem tivesse qualquer convívio, a Maria da Penha te protegeria. Se você NÃO tivesse vínculo com o agressor, esse tipo de perseguição reiterada era enquadrada apenas como “perturbação de tranquilidade” que nem sequer era crime, era apenas contravenção penal. Um completo absurdo diante do comportamento do brasileiro nas redes sociais e do leque de perigos que veio na esteira do crescimento dessa comunidade virtual.
Segui a vida com aquele nó na garganta que durou meses, as ameaças e posts ofensivos que se multiplicavam – na última vez que contei eram mais de mil – e a sensação de absoluto desamparo. Até que um dia, um jornalista muito talentoso com o qual eu trabalhava chamado Flávio Dias, encontrou a história da Verlinda. Uma radialista que postou no facebook a perseguição que vinha sofrendo por parte de um “apaixonado”, porque tinha medo de que algo acontecesse com ela. Uma mulher usando a opinião pública para se proteger do que a justiça não a protegia.
Verlinda foi um alento. Ela daria voz à história que eu não podia contar. Juntamos o caso dela com o de outra vítima e fizemos uma grande reportagem para o G1 de Mato Grosso do Sul, onde eu trabalhava. Procuramos delegacia da mulher, advogado criminal, uma promotora especialista em Stalking e com essa matéria conseguimos para a Verlinda uma medida protetiva, mesmo sem vínculo. Uma pequena vitória, mas não era o suficiente.
Essa história chamou a atenção do Fantástico, que fez uma reportagem com a Verlinda e outras vítimas pelo país, mobilizando quem precisava: o poder público. Na semana seguinte a equipe da senadora Leila Barros (DF) me encontrou através da reportagem do G1, contei meu caso e pude explicar onde estava a brecha na lei. O texto da Lei do Stalking foi montado de modo a cobrir essa lacuna. Desde o dia em que o projeto foi apresentado, acompanhei ansiosa cada passo até 31 de março de 2021, dia em que assisti, aos prantos, a lei ser sancionada.
Um dos assessores da senadora, que gentilmente me atualizava de tudo, mandou o link da sessão do Senado e havia uma surpresa preparada: ela citou meu nome e o da Verlinda como inspirações para a criação da lei. Chorei por horas sem parar e mesmo agora, escrevendo esse texto, estou chorando em cima do teclado. Chorei no vídeo que está no tiktok. Choro toda vez que conto essa história. A sensação de justiça feita ali foi maior do que se eu tivesse assistido meu perseguidor ser preso, o que jamais aconteceu.
Trecho da sessão sobre a lei do Stalking:
A Lei do Stalking é o maior legado da minha vida. Consegui transformar a indignação em algo útil, uma reportagem, um registro indelével na história que acabou se tornando um mecanismo de proteção para outras mulheres. Nunca fui protegida do meu stalker, mas se você sofrer perseguição agora, consegue medida protetiva. Se a pessoa quebrar essa restrição, é presa em flagrante. Essa é minha maior vitória.
Verlinda e eu ficamos amigas, mas hoje ela não toca mais no assunto. O homem que a assediava faleceu, e ela quer esquecer tudo aquilo, com toda a razão. O psicopata que me perseguiu por anos tinha antecedentes criminais, inclusive boletins de ocorrência por violência doméstica. Nunca falha, não é? Nunca falha. Tenho certeza que ele me ameaçou mais vezes além das milhares contabilizadas até 2020, quando veio a pandemia e simplesmente parei de acompanhar. Minha saúde mental era mais preciosa e eu já tinha torrado muito dinheiro tentando preservá-la.
Por onde anda meu stalker? Não sei e nem quero saber. Sigo esperando a justiça fazer seu papel na ação, que por sinal, ganhei. Já pensou se eu estivesse até hoje fazendo boletins de ocorrência suficientes para que fosse notada? Por outro lado, tomei providências mais efetivas: as provas de tudo o que escrevi aqui, além de outros detalhes e personagens que não citei, estão na mão de 4 jornalistas de minha inteira confiança. É a minha trilha de farelos de pão.
Uma mulher ameaçada não tem tempo para esperar a burocracia da justiça até ser protegida. Precisamos de agilidade nesse ponto do processo e não de comoção e notas de pesar quando o corpo é encontrado. Se você sofre perseguição reiterada nas redes sociais ou fisicamente, reúna as provas, faça boletim de ocorrência por stalking e peça medida protetiva, sua paz precisa ser garantida pela lei.
Se nesse ponto a lei falhar, conte com a opinião pública, é para isso que estamos aqui. O ambiente virtual é um caminho sem volta, é nossa obrigação garantir que ele não seja palco para um crime que passa batido diante de uma legislação analógica demais para a velocidade dos tempos.
Vídeo parte 2: