O assassino e o espelho

Ele entrou na casa pela garagem. Era assim, invisível, que ele gostava de permanecer nos dias em que não podia encontrar seus pais. Não com aquela roupa. Não com aquela faca ainda suja do sangue da última vítima. A pia que o pai tinha instalado pra lavar as mãos após mexer nas peças cheias de […]

Ele entrou na casa pela garagem. Era assim, invisível, que ele gostava de permanecer nos dias em que não podia encontrar seus pais. Não com aquela roupa. Não com aquela faca ainda suja do sangue da última vítima. A pia que o pai tinha instalado pra lavar as mãos após mexer nas peças cheias de graxa vinha a calhar nessas horas. O DNA dos mortos ia pelo ralo levando junto seu medo de ser identificado.

coluna alex 1

Ninguém sabia que era ele o assassino que aterrorizava a cidade havia quase dois anos. Começou sem querer, numa tentativa de assalto frustrada. O rapaz não quis entregar o celular, vacilão. E ele queria muito um modelo novo. Os pais podiam comprar pra ele, mas qual a graça disso? Tomar à força era mais gostoso.

Sem dúvida, o maior prazer que conhecia até então. O do medo no olhar das pessoas quando apontava a faca pontiaguda, afiada, reluzente. Quando a enfiou pela primeira vez na barriga de alguém, viu, aí, sim, o que era realmente o medo. Nos olhos do jovem que se arregalaram anunciando, sem falar e sem piscar, a certeza de que iria morrer ali. O som que ele achava escutar da carne cortando, rasgando, separando aos poucos a luz da escuridão… e o tato… incrível como, apesar de não encostar a pele de sua mão enluvada na da vítima, sentia como se seus dedos é que abrissem as entranhas do sujeito.

Ele amava ouvir a respiração acelerar e diminuir do pobre coitado escolhido até o silêncio profundo… Era a paz depois do caos. A roupa preta, as luvas de borracha, as botas comuns de motoqueiro — para dificultar a identificação — e a máscara de demônio com boca escancarada e dentes vampirescos foram limpas com uma esponja e álcool. Dobradas impecavelmente e acondicionadas na mochila discreta de alças para as costas e sem marca. E dali, ganharam a escuridão num compartimento secreto dentro de uma máquina velha que o pai mantinha lá — mais pelo trabalho de se desfazer do trambolho do que por sua utilidade.

Ele vestiu a roupa de trabalho que estava ali e subiu pra casa em busca do cheiro do jantar. Ao abrir a porta, sentiu-o. Mas era outro odor. Um que ele conhecia muito bem. Pelo menos há dois anos. Era de sangue fresco. Seu coração frio começou a palpitar. Resolveu não chamar ninguém. Aguçou os ouvidos e ouviu vozes. Vinham do quarto dos pais. O cheiro de morte também era de lá. O assassino mais procurado do país estava com as pernas trêmulas.

Não, não podia ser. Como? Ele era o perigo. E estivera fora de casa a noite toda. Caminhou pé ante pé pelo carpete de madeira sem perceber que ali havia resquícios de pegadas vermelhas recém removidas. Ao se aproximar do cômodo onde os pais estavam, reconheceu as vozes. Eram de atores. Da série que os pais gostavam. Ele imaginou as cenas que tanto lhe davam prazer acontecerem com sua mãe, com seu pai. As expressões de dor, de desespero. Impotência. Do pai. E dele mesmo. Como não os protegeu do que sabia tão bem como funcionava? Levou a mão trêmula à maçaneta. Inspirou e a puxou pra baixo.

O homem que ele tanto amava estava desfigurado. Os cortes retalharam sua feição. A mãe, de costas, ao pé da cama. Morreu tentando fugir como muitas vezes ele viu suas vítimas fazerem. Uma faca pequena e fina tinha sido usada. Sem dúvida, ele conhecia todos os tipos. Tinha usado todos os tipos. E já a tinha visto muitas vezes na cozinha da própria casa, no escorredor de louças. Certeza. Eles estavam mortos.

O jovem de 19 anos voltou pro corredor e entrou no seu quarto. Desorientado, parou em frente ao espelho que ficava do lado oposto à porta de entrada. O que aconteceu? O que ele faria? Quem fez isso? Ele seria incriminado, descoberto? A cabeça rodava. Ao mirar, na penumbra, seu reflexo cheio de um medo inédito, não se reconheceu. Até escutar um barulho atrás de si. Olhou sem precisar virar a cabeça. E se viu na entrada do quarto. Um espelho de si próprio, mas em miniatura. Com cerca de metade de seu tamanho. A roupa preta larga demais, grande demais praquele corpo.

A máscara do demônio se equilibrava desajeitada numa cabeça que era bem menor que a dele, deixando os chifres e as orelhas pontiagudas desalinhados, com um lado mais pra baixo que o outro, como se o monstro estivesse com o pescoço inclinado olhando com complacência para o rapaz na frente do espelho. Só as botas não eram as mesmas. A ameaça usava um par de tênis infantil, que ele reconheceu de imediato.

Reconheceu também a faca na mão pequena e branca do assassino dos pais. Não era a da cozinha. Era a sua, que tinha acabado de usar antes de trocar de roupa. Ele soube na hora quem era. Mas não teve tempo de se virar para encará-lo. O menino saltou com uma velocidade incrível para seus dez anos de idade e cravou a arma dura e fria no pescoço do irmão mais velho. Eles caíram.

O pequeno assassino se posicionou sobre o peito do maior, apertando as coxas sobre a lateral do corpo caído. Assistindo a agonia com curiosidade. O sangue pintando todo o tapete, escorrendo pelos dedos que, em vão, tentavam tapar o rasgo. Com a outra mão, ele tirou a máscara do pequeno. A mesma que tinha acabado de guardar no esconderijo que achava ser secreto. O menino sorria com triunfo. Sempre quis ser como o irmão mais velho. Ele sabia de tudo. Tinha encontrado o diário de mortes do demônio assassino. Os detalhes que eram contados encantaram a criança. Eram as historinhas que embalavam seus sonhos de grandeza e de maldade nos últimos 18 meses. Afinal, o irmão escreveu várias vezes naquelas páginas de sangue: matar era o maior prazer que conhecia!

— Como não previ isso? — o futuro morto perguntou pra si mesmo ao ver a faca em sua direção para um último golpe. E lamentou. Não a morte dos pais, não a dele mesmo. – Poderíamos ter matado tanta gente, juntos, irmãozinho!

Morreu sem ver que suas últimas palavras seriam inúteis. O pequeno assassino nunca quis sua companhia, pra que? Ele acabara de provar que o aprendiz tinha superado o mestre. E a máscara natural de criança inocente era o melhor disfarce. A saga do palhaço assassino finalmente acabou. A pele demoníaca de borracha voltou para o rosto do dono original. A faca também ganhou as impressões digitais do cadáver. Ele seria entregue às autoridades após matar os pais e ameaçar o irmão mais novo.

Que sorte a do menino ter se escondido atrás da porta do quarto do assassino para surpreendê-lo e se salvar. Que garoto corajoso! — diriam as pessoas, dos vizinhos às autoridades policiais. As mesmas que em breve estariam trancando as portas das casas e abrindo investigações sobre um novo maníaco assassino na cidade.

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