Presente de Natal
Nicole estava com os já enormes olhos verdes arregalados. À sua frente, a blusa amarela com a qual vinha sonhando desde que a tinha visto na propaganda da televisão. Deixaria seus ombros bronzeados à mostra e com caimento perfeito no corpo sem gorduras. Ela ficou tentada a prová-la. Mas o preço na etiqueta proibia. O […]
Nicole estava com os já enormes olhos verdes arregalados. À sua frente, a blusa amarela com a qual vinha sonhando desde que a tinha visto na propaganda da televisão. Deixaria seus ombros bronzeados à mostra e com caimento perfeito no corpo sem gorduras.

Ela ficou tentada a prová-la. Mas o preço na etiqueta proibia. O que tinha na carteira era suficiente apenas para o presente dos pais. E ela jamais trocaria a alegria deles pela própria. Se despediu da peça com um carinho e lágrimas nos olhos. Deu um sorriso triste que dizia: “Quem sabe, numa promoção, a gente volta a se encontrar.” Mas não seria nesse Natal. Com certeza, não.
Nicole enfrentou a fila e chegou no caixa. Deu à atendente o pijama que daria ao pai e a calça que a mãe tanto precisava para substituir a que já estava rasgada. A moça parecia bem distraída, atolada, talvez por tanto serviço. Ao seu lado, uma colega de trabalho retirava os alarmes de várias peças deixando tudo muito bagunçado sobre o balcão.
– Próximo! O senhor não, por favor. Só um minuto, que ela tem preferência.
Nicole olhou a caixa vizinha à sua que falava e virou o pescoço para encontrar o alvo da mensagem. Um homem com uma sacola cheia de roupas deu um passo para o lado e uma senhora baixa, de cabelos pretos curtos, vestida de simplicidade e com uma rasteirinha com as tiras pedindo socorro, apareceu. Em suas mãos calejadas, o cabide e a blusa amarela dos sonhos de Nicole.
A idosa se aproximou, colocou-a sobre o balcão. A atendente pegou o produto, passou o leitor sobre a etiqueta e falou o preço em voz alta. A mulher abriu a carteira, retirou um dinheiro contado e entregou à funcionária. Ao receber o dinheiro, a moça recebeu um encontrão da colega que retirava os alarmes e tudo foi ao chão. A blusa amarela, o pijama do pai, a calça da mãe, as notas e mais um monte de roupas.
Todos se ajudaram e os presentes acabaram embrulhados como forma de compensar o desastre. Nicole saiu com os dois pacotes.
A senhora caminhou lentamente levando o peso da vida sofrida num sorriso gigante de satisfação. Ia dar à única filha o presente que ela tanto queria: a blusa amarela que ela vira na propaganda. A idosa não via a hora de chegar em casa para colocar até a ceia o embrulho embaixo da árvore já quase sem galhos e poucos enfeites. A viagem era longa. Cerca de quatro horas de ônibus até lá. Sacrifícios que valeriam muito a pena. A filha era o que tinha de mais importante na vida.
…
Nicole pegou um carro de aplicativo e foi pra casa. O coração batia forte demais. O motorista viu, pelo retrovisor, que ela arfava. Ela não acreditava que tinha feito isso. Chegou a pensar em voltar. Mas não teve coragem e nem vontade.
Com a respiração controlada, abriu a sacola e pegou os embrulhos. Ambos estavam envoltos por um papel igual. Vermelho e com letras pequenas e douradas escrevendo o nome da loja por quase todo o espaço. Com muito cuidado, abriu o primeiro retirando delicadamente a fita adesiva. Era a calça da mãe. Fechou o pacote e colocou-o de volta à sacola. Pegou o outro, abraçou-o como se fosse um urso de pelúcia. Abriu-o com disposição e vontade de ver que a blusa amarela estava, agora, em suas mãos.
Ela tinha aproveitado a confusão na loja para trocar o embrulho com a senhora. A idosa tinha a nota, então, com certeza, a caixa reconheceria o erro no pacote e entregaria a roupa certa para a mulher assim que ela descobrisse que levou o presente errado. Duas jovens ficariam felizes naquele Natal. Era o que ela, equivocadamente, pensava enquanto guardava a blusa.
…
A duzentos quilômetros dali a senhora dormia no ônibus quando ele precisou frear bruscamente pra não cair num buraco. Várias sacolas e malas despencaram do bagageiro acima dos assentos. A mulher, recuperada do susto, olhou com preocupação para o presente da filha. Ele estava a umas cinco fileiras à frente. E ela sorriu agradecida quando um estudante recolheu o material espalhado e lhe devolveu a sacola da loja. Um gesto labial que mudou de forma conforme a boca assimilou o que os olhos viram.
Havia um rasgo na sacola, no embrulho. E o que tinha dentro era escuro. Rapidamente, as mãos trêmulas abriram o pacote. Uma bermuda e uma camiseta de malha: o pijama do pai de Nicole.
Faltou fôlego para gritar. Para chamar alguém. Ela se levantou… A mulher ao lado pediu pra ela recolocar o cinto e se sentar. Havia perigo na estrada. Ela não ouviu. Só balbuciou apontando o embrulho em sua direção.
— Eu tenho… que trocar… tá errado. É pra minha filha.
A caminhada até o motorista para pedir que ele parasse o ônibus teve só três passos. Outra freada brusca. A sacola novamente foi para o chão, mas desta vez, levando consigo o corpo pequenino e sem equilíbrio da mulher. A cabeça dela encontrou a dor no choque com um dos assentos. Os ossos já desgastados do pescoço não resistiram ao impacto.
…
Enquanto isso, Nicole, na frente do espelho, olhava para seu corpo com o tronco, agora amarelo. De frente, de costas. Ela ria de satisfação.
— Incrível! Era o número dela!!!
Servira certinho. Em cima da cama, o presente da mãe. E o que adaptara para o pai. Uma garrafa de vodca que ganhara de amigo secreto e nem abrira. O pai adorava caipirinha mesmo.
…
A moça não acreditava que aquele corpo embaixo de um lençol na beira da estrada era o de sua mãezinha. Não, isso não poderia ter acontecido. Não, não na véspera de Natal. O choro desesperado foi interrompido pela estranha que se aproximou com um embrulho.
— Sinto muito! – ela disse com sinceridade – Isso estava com a tua mãe. – e a mulher chorou – Ela disse que tinha algo errado, que ela precisava trocar porque era pra você… Eu… eu acho.. que a loja trocou e ela não viu. Aí se levantou pra… pra parar o ônibus… e ela caiu…. – a desconhecida abraçou a moça.
A jovem aceitou o conforto e pegou o embrulho quando ficou sozinha de novo. Reconheceu, nas letrinhas douradas do papel, o nome da loja e percebeu o que a mãe tinha feito. Sem avisar ninguém, a idosa foi até o shopping da cidade grande pra comprar a blusa amarela. Elas estavam sentadas na sala, de mãos juntas, quando a moça viu a propaganda e comentou sobre a beleza da peça. Lembrava do que a mãe tinha falado antes de receber um beijo de carinho:
— Pede pro Papai Noel, meu anjo. Que ele vai trazer pra você.
….
De banho tomado, Nicole vestiu a blusa com uma saia, sandália de meio salto, bijuterias, perfume, vaidade e um sentimento que nunca experimentara antes. Estava poderosa.
…
Sentada na recepção da funerária, a moça estava com a cabeça entre as pernas. As lágrimas molhando o chão abaixo de si. Esperava a liberação do corpo da mãe e fazia as contas para pagar o caixão em várias parcelas. Estava cansada, triste, arrasada e um sentimento que nunca experimentara antes. Estava com raiva.
— Odeio essa blusa! – falava baixinho – Minha mãe morreu por sua causa! Maldita! – falou com ódio no coração a poucos minutos da meia-noite. – Eu amaldiçoo a pessoa que fez essa troca!!! Quero que ela sofra como eu estou sofrendo… É o que eu quero de Natal… Ai, meu Deus, que dor!!
E ouviu um sino tocar à distância.
…
A mãe de Nicole balançava o objeto. O pequeno badalo batia de um lado pro outro na parede de metal imitando o som do Natal. O pai dela cortava a carne enquanto todos brindavam e bebiam na celebração. Já passava da meia noite e ela não conseguia tirar o olho daquela faca. Brilhante. Afiada. Convidativa. Ela se aproximou:
— Deixa que eu corto, pai.
…
A moça marcou o velório. O corpo da mãe estaria ali para a despedida. Já o espírito dela tinha outros planos. Estaria numa festa longe dali.
…
Foi a segunda vez em menos de 24 horas que Nicole não entendeu o porquê fez aquilo. Primeiro, a troca dos embrulhos da blusa. Agora, a razão de ter passado a faca no pescoço do pai. Enquanto ainda pensava nisso, usou o utensílio para acabar com a própria família. Um a um, em meio a gritos abafados pelos fogos de artifício, eles foram aniquilados.
Ela caminhou, exausta, para o quarto. Ao passar pela sala, a árvore de Natal oscilou a iluminação. E Nicole escutou passos arrastados em sua direção. Parecia que alguém caminhava com uma rasteirinha prestes a arrebentar.
Virou o corpo para outra direção e foi até o quarto. Acendeu a luz e olhou-se no espelho. A blusa não era mais toda amarela. Boa parte fora tingida de sangue. Os passos se aproximaram por trás da jovem. E ela sentiu mãos cheias de calos em seus ombros. E o sussurro no ouvido.
— Oi, Nicole. Linda sua blusa.
A jovem olhou pra baixo. E percebeu que estava com a faca vermelha na mão. Lágrimas escorreram. E ela voltou a ouvir a voz:
— É Natal. Dia de celebrar. – e virou o rosto de Nicole com as mãos. O corpo todo virou em direção a porta. – Tem alguém te esperando na sala. Vá pra ele, agora, menina!
E Nicole sentiu um empurrãozinho nas costas. Andou na direção da árvore iluminada. Ao pé dela, um homem de vermelho à esperava sorrindo. Os braços abertos.
— Papai Noel? – ela disse, de longe.
Ao se aproximar, novamente a luz dos enfeites da árvore piscaram. E ela viu que a figura não tinha barba, nem gorro. Usava cavanhaque e chifres.
Não deu tempo de correr de suas garras.
A idosa riu satisfeita pelo pacto que tinha feito.
Não conseguiu entregar a blusa, mas atendeu o último pedido da filha.
E seguiu o presente de Natal que gritava sem sucesso por socorro.