Precisamos separar a arte do artista

Por que tratamos os artistas que consumimos como se tivéssemos escolhendo amigos?

Não nos interessamos em saber quem são as pessoas que construíram a nossa casa ou quem fez a nossa comida. Mas, temos o desejo de saber da vida de quem produz a arte que consumimos.

“O que faz aquele ator quando não está na minha novela?”
“A cantora que eu escuto gosta de meninos ou de meninas?”
“Qual a religião do autor desse meu livro?”

Por que temos esses pensamentos só com os artistas?

Podemos tentar justificar dizendo que o artista usa a alma durante o seu processo criativo. A obra que ele cria é uma parte de quem ele é.

Pablo Picasso
Estátua de cera de Pablo Picasso ao lado de uma das obras mais importantes do artista:
“A mulher que chora”.

Mas isso também ocorre com os cozinheiros e com os pedreiros. Certamente a personalidade deles impacta no trabalho que fazem.

Um cozinheiro judeu provavelmente não vai fazer um porco à pururuca tão bem-feito quanto um não judeu, sem restrições culturais alimentares. Um pedreiro que comete estelionato pode colocar a sua casa em risco de desabar por causa de um desvio de materiais, por exemplo.

Por outro lado, nada que um artista tenha feito na vida pessoal poderá prejudicar alguém através da arte que ele produz. Mesmo assim, somos influenciados pelo comportamento dos artistas na hora de consumir a arte que ele faz.

Quantas vezes ouvimos frases como essas:

“Esse aí perdeu a graça depois que apoiou o Lula”
“Fiquei sabendo que esse aí é Bolsonarista, não escuto mais!”

“Ih, esse aí já foi preso por tráfico, vou apagar da minha playlist”
“Eu não toco a música desse cara, ele é assediador!”

Entendo que essa é uma tentativa de fazer justiça. Muitos justificam que “não conseguem” mais consumir a arte de determinado artista depois que soube de algum comportamento dele.

Mas eu, como músico, não posso fazer esse tipo de julgamento se não quem perde sou eu.

Tem gente que não quer ouvir falar de Michael Jackson porque ele já foi preso depois de ser acusado de abuso sexual infantil.

Imagine só se eu tivesse deixado de conhecer a obra de Michael? Um fato ligado a vida pessoal dele, repeliu milhares de pessoas (talvez milhões) de terem acesso a uma das obras mais brilhantes da música do século XX.

Pablo Picasso, artista que revolucionou a história da arte formando a base para o cubismo, deixou um rastro de violência contra as mulheres e misoginia. Devemos ignorar completamente a obra de Picasso?

Eu gosto de pensar que quando um artista termina uma obra, ela não pertence mais a ele. A obra ganha vida própria. Conquista pessoas que se quer conhecem o artista, chega a lugares que o artista nunca vai chegar, provoca sentimentos que a pessoa do artista nunca vai ser capaz de provocar.  

Quando o pedreiro termina uma casa ele entrega a casa. A casa é de quem mora nela, assim como a música é de quem ouve. O morador da casa vai usá-la como quiser, assim como o ouvinte da música.

Se liberte! A arte é do mundo. De onde ela veio não importa. Se tiver que pedir um histórico de tudo o que você consome, você vai acabar se consumindo.  

Precisamos separar a arte do artista assim como separamos a obra do pedreiro e a comida do cozinheiro.

Porque nessa tentativa de fazer justiça quem vai pra prisão é você.

Leia mais

  1. Aos donos do bom gosto

  2. 7 músicas da Rita Lee que foram censuradas

  3. Coisas que estão te impedindo de aprender violão

Este conteúdo reflete, apenas, a opinião do colunista Toca Raul, e não configura o pensamento editorial do Primeira Página.

Comentários (1)

  • Petrus

    Sendo fã de Sandman há muitos anos, é desafiador ver essa situação e falar “nunca mais lerei essa obra novamente”. Concordo que Gaiman precisa reparar os danos que fez da melhor forma possível para as vítimas, o que inclui sua punição dentro da lei, mas tenho apego a sua obra. Será que fui influenciado negativamente por ela? Até hoje sempre pensei o contrário, pois nada nela me levou a querer violentar nem abusar ninguém. Mas essa omissão desse aspecto sombrio de sua personalidade não é também uma grande contradição / hipocrisia no universo em que criou?