A internação dos doentes mentais: saiba o que diz a lei
No Brasil, ficaram famosos os manicômios, hospitais psiquiátricos que se eternizaram no imaginário popular pela imagem de pessoas vestidas com camisa de força
Há centenas de anos, a internação involuntária de doentes mentais é objeto de grande discussão entre médicos, políticos e juízes, e segue até hoje como uma das questões não resolvidas, ou pelo menos mal resolvidas, da sociedade brasileira.

Em seu livro “A história da loucura na idade clássica”, o filósofo Michel Foucault retrata como um marco da política de internamento a fundação do Hospital Geral de Paris, em 1656, um local destinado a “recolher, alojar, alimentar aqueles que se apresentam de espontânea vontade, ou aqueles que para lá são encaminhados pela autoridade real ou judiciária”. Na prática, era um local destinado aos pobres de Paris, “de todos os sexos, lugares e idades, de qualquer qualidade de nascimento, e seja qual for sua condição, válidos ou inválidos, doentes ou convalescentes, curáveis ou incuráveis”.
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No Brasil, ficaram famosos os tenebrosos “manicômios”, aqueles “hospitais psiquiátricos” que se eternizaram no imaginário popular pela imagem dos loucos vestidos com “camisa-de-força”. Esse tipo de instituição psiquiátrica passou a ser criticada pelos defensores de um tratamento humanizado para os doentes mentais, num movimento que culminou na chamada “reforma psiquiátrica brasileira”.
Inspirados pelos trabalhos de Franco Basaglia, principal expoente da reforma psiquiátrica da Itália, foi a partir de 1978 que o movimento tomou corpo no Brasil, notadamente com a crise da “Divisão Nacional de Saúde Mental”, o órgão do Ministério da Saúde incumbido de organizar o sistema hospitalar psiquiátrico.
Naquele ano, diversos profissionais da saúde mental denunciaram as péssimas condições dos hospitais psiquiátricos no Rio de Janeiro. No ano seguinte ocorreu o primeiro encontro nacional de trabalhadores em saúde mental, realizado em São Paulo. O próximo passo foi a fundação do principal protagonista da reforma psiquiátrica brasileira, o MTSM (Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental).
O MTSM era formado por trabalhadores da área da saúde, associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e por pessoas com histórico de internações psiquiátricas. Ele protagonizou uma série de denúncias sobre a violência sistemática dos manicômios, sobre a “mercantilização da loucura”, colocando em xeque o modelo de medicina psiquiátrica voltado para a internação hospitalar das pessoas com transtornos mentais.
Baseados na experiência italiana, o II Congresso Nacional do MTSM, em 1987, adotou o lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Neste mesmo ano, foi realizada a I Conferência Nacional de Saúde Mental (Rio de Janeiro) e criado o primeiro CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) no município de São Paulo.
A consagração da história luta do MTSM somente veio em 2001, com a edição da Lei nº 10.216, conhecida como a “Lei da Reforma Psiquiátrica”. Ela dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, promovendo a transferência do foco do tratamento, que antes se concentrava na instituição hospitalar, para uma rede de atenção psicossocial estruturada em unidades de serviços comunitários e abertos.
Ao centrar-se na dignidade da pessoa humana, a Lei 10.216 instituiu uma série de direitos para os portadores de transtornos mentais, a saber:
I – ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;
II – ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;
III – ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;
IV – ter garantia de sigilo nas informações prestadas;
V – ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;
VI – ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
VII – receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;
VIII – ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;
IX – ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.
Além disso, a lei deixa claro que a internação, além de ser o último recurso, deve ter como finalidade o retorno do paciente ao convívio social, bem como será estruturada de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.
Sendo assim, a instituição de internação não pode resumir-se ao serviço médico psiquiátrico, mas deve contar também os serviços de assistência social, psicólogos, terapeutas ocupacionais, além de oferecer um espaço de lazer, tudo a promover o verdadeiro tratamento do doente, para que possa voltar ao convívio de seus pares.
Para que a internação possa ocorrer, é preciso que um médico psiquiatra elabore um laudo circunstanciado, que significa minucioso, pormenorizado, apontando todas as circunstâncias que justificam a necessidade da internação, sobretudo demonstrando quais tratamentos foram aplicados naquele paciente e que não surtiram a resposta adequada.
Se a internação é o último recurso, é preciso que outras abordagens terapêuticas sejam anteriormente adotadas. É para isso que existem os CAPS (Centros de Assistência Psicossocial). Segundo o Ministério da Saúde, as CAPS são unidades que prestam serviços de saúde de caráter aberto e comunitário, constituído por equipe multiprofissional que atua sobre a ótica interdisciplinar e realiza prioritariamente atendimento às pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, em sua área territorial, seja em situações de crise ou nos processos de reabilitação psicossocial.
No site www.ccs.saude.gov.br/saudemental/ há uma relação das cidades que possuem um CAPS e os respectivos endereços. Vale dizer que os serviços da atenção psicossocial devem ser oferecidos pelos Municípios independente de terem uma sede do CAPS.
Retomando o tema da internação, a lei estabelece três tipos: a internação voluntária, que ocorre quando o paciente concorda com ela; a internação involuntária, quando ela é requerida pelo responsável legal contra a vontade do paciente, devendo ser comunicada ao Ministério Público; e a internação compulsória, quando é determinada pela Justiça.
Este último caso de internação, quando determinada por ordem judicial, vem sofrendo algumas críticas por parte dos especialistas. É que muitas vezes os responsáveis legais recorrem à Justiça, pedindo a internação do paciente, sem que antes ele tenha passado pela Rede de Atenção Psicossocial, que começa na atenção primária, pelo atendimento no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial).
É o caso de um homem de 31 anos, morador do município Naviraí, MS, portador de esquizofrenia paranoide, e que teve a internação compulsória decretada pela Justiça sem um “laudo médico circunstanciado” e sem ter sido oportunizado o direito de se defender previamente, uma vez que a internação foi decretada por decisão liminar.
Ao que se constada dos autos, a internação foi baseada unicamente no que está escrito no campo “Resumo Psiquiátrico” de uma “ficha de atendimento médico”, na qual também consta que o paciente não fez acompanhamento na rede de atenção básica e que ele não fez uso regular de medicação. É o avesso do que a lei determina!
O próprio Estado de Mato Grosso do Sul recorreu da decisão judicial, demonstrando a ilegalidade da internação, mas não obteve sucesso, e a internação foi mantida. Um triste exemplo de que a judicialização nem sempre é um caminho coerente com as disposições da Rede de Atenção Psicossocial.
No próximo artigo trataremos das internações dos usuários de drogas.
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Um abraço e até a próxima semana.