Bilhete, celular por 30 mil, disputa por chefe de facção: os detalhes da "Sintonia dos Gravatas"

Operação revela convivência promíscua e criminosa entre advogados e integrantes de facção criminosa

Dia 6 abril de 2021. No presídio que é considerado o mais seguro do sistema penal sul-mato-grossense, um bilhete escrito à mão é apreendido na cela 25. Nele, a ordem é para “cortar” um juiz, uma juíza e uma promotora de Minas Gerais. Cortar – no dialeto do submundo da facção paulista que domina a massa carcerária em Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná e outros estados – equivale a dar fim à vida dessas pessoas, ou seja, cometer atentados como represália à atuação no combate ao crime organizado.

bilhete gravata
Bilhete com ordem para atentados a autoridades foi apreendido em cela. (Foto: Canal Aberto)

Na mesma cela, outro manuscrito é localizado. O papel traz nomes de servidores do sistema penitenciário e até de autoridades do Executivo. A mensagem fala em “cortar árvores”, outra expressão traduzida como ordem para execuções de pessoas que estariam atrapalhando as ações da quadrilha. Está escrito que todas já estão “rastreadas”.

Um mês depois, na mesma cadeia, é descoberta a entrada de um celular e um chip, artigos proibidos mas comuns em outras prisões. Até então não havia registros de entrada nessa unidade, o presídio fechado de segurança máxima da Gameleira, mais conhecido como “Supermáxima”, em Campo Grande. Ainda hoje, as autoridades afirmam ter sido um episódio isolado.

O custo do “objeto de luxo”: cerca de 30 mil reais em propina a servidor público ainda não identificado.

O “hóspede” do alojamento onde estavam os dois manuscritos citados no início do texto foi além. Em requerimento, escrito à mão, encaminhado à direção do presídio, reclama de perseguição por parte de um magistrado responsável pela execução penal. No texto, diz saber onde o juiz trabalha, onde mora e promete que a situação – o fato de ser mantido em regime de custódia mais severo – terá “resposta à altura”.

Em agosto do ano passado, um projétil intacto é localizado na frente da casa da autoridade do judiciário em bairro nobre da capital de Mato Grosso do Sul. Não estava simplesmente caído ao solo e sim posicionado, em pé. O achado é interpretado como um recado intimidador.

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Aluguel de senha

Um mês antes, em julho, ficaria exposto o contato irregular entre um advogado e um servidor do Poder Judiciário, justamente da repartição de onde saem as decisões sobre como os presos vão cumprir penas, a mesma do juiz ameaçado.

O funcionário, chefe do cartório, com total confiança para manejar processos e informações sigilosas, “alugava” suas senhas de sistemas de informações para o causídico.

Isso veio à tona porque, numa madrugada, foi feita consulta ao prontuário de delegado da Polícia Civil integrante de força-tarefa responsável por investigar milícias armadas no Estado, durante a operação Omertà, e também por inquéritos sobre os “tribunais do crime”, sessões violentas de justiçamento de desafetos promovidas pelo bando. A busca dos dados sigilosos foi horas depois de o policial dar depoimento em um caso que envolve corrupção de agentes públicos.

“Sintonia dos Gravatas”

Em comum, todas essas situações envolvem indícios fortes de que advogados, profissionais formados para atuar em favor do cumprimento da lei, tenham agido como garotos de recado e espécie de office-boys dos agressores da legislação penal. Integrantes da “Sintonia dos Gravatas”, não apenas faziam, segundo a apuração, o trabalho defensivo e de atendimento dos custodiados, como também levavam e traziam recados do mundo externo sobre ações fora da lei, administravam valores, pagavam propinas e, como recompensa, recebiam espécie de mensalidade pelo serviço prestado.

Até foto de gente morta, com os algozes fazendo gestos alusivos ao grupo criminoso, foram achadas em telefones vasculhados durante a operação “Courrier”, deflagrada em 25 de março pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado), com apoio do Garras (Delegacia Especializada de Combate a Roubos, Assaltos e Sequestros) e dos Batalhões de Choque e Bope (Operações Especiais) da PM.

Para o Gaeco, as regras rígidas de visitação e entrada de pertences na “Supermáxima”, a exemplo dos presídios do sistema federal, incentivaram a consolidação de duas classes de advogados: os de processo, e os de recado. Os últimos se confundem com os próprios bandidos.

A intensidade das visitas aos homens encarcerados, notadamente depois das restrições trazidas pela pandemia de covid-19, é apontada como forte indicativo de elo diferente daquele usual entre cliente e representante legal. Um dos membros de facção investigados, o que recebeu o celular na cadeia, teve 66 visitas de advogado no período levantado.

Ele queria mais, descobriu o Gaeco. A intenção era montar uma “central” com três linhas telefônicas para uso dos colegas, com vistas a prosseguir comandando o crime intramuros.

corredor de presídio da gameleira
Corredor de presídio da Gameleira, em Campo Grande, de onde recados saíram por meio de advogados, segundo o Gaeco. (Foto: Arquivo)

Na “Supermáxima”, uma das medidas contra o uso ilegal dos telefones móveis é a não existência de tomadas elétricas nas paredes das celas e nos corredores. Para driblar a engenharia, luminárias foram destruídas para uso da fiação no carregando dos aparelhos. Além disso, há suspeitas de servidores fazerem o papel de pegar o aparelho, dar carga, e devolver para os internos.

A partir da apreensão do celular com o preso da “Supermáxima”, em maio do ano passado, o trabalho de acompanhamento identificou que uma advogada corrompeu um policial penal para entregar o aparelho e outra entrou com o chip. Essa outra também ficou responsável por criar uma conta de e-mail para garantir o acesso ao Whatsapp.

Conversas interceptadas comprovam esses fatos, com diálogos entre a mulher e parentes do criminoso e com os próprios faccionados, apurou o Primeira Página. Essas duas advogadas chegaram ao extremo de concorrer ao posto de “preferida” do faccionado a quem levaram o celular, por sua vez um homem condenado a quase 70 anos de prisão por diversas infrações penais.

Agir para atrasar a chegada da outra no lugar, e ir primeiro para convencer o cliente disputado está entre as artimanhas narradas.

Depois desse episódio, o condenado foi transferido para uma penitenciária federal, em Mossoró (Rio Grande do Norte). Essas unidades são destinadas aos bandidos mais perigosos.

Nas comunicações rastreadas, é perceptível um clima de rivalidade entre dois grupos de defensores dos presos. Exemplo disso é a queixa sobre o baixo valor cobrado por uma das advogadas por visitas para levar e trazer recados: R$ 120,00

Há um capítulo nas situações identificadas que é revelador da convivência anormal e promíscua entre advogados e condenados.

Intimidade

No dia 30 de setembro do ano passado, um preso que estava no semiaberto recebeu autorização para fazer exame médico em uma clínica no Centro de Campo Grande. A advogada dele informou aos funcionários do Centro Penal Agroindustrial da Gameleira que a esposa buscaria o interno.

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Advogada e “Tio Doni” juntos. (Foto: Canal Aberto)

Quem apareceu, contudo, foi a advogada, no carro dela. O trajeto foi acompanhado por uma equipe de campo, diante do risco de fuga. O que se presenciou foi uma cena de intimidade entre advogada e cliente, que se abraçaram na recepção do estabelecimento.

A saída da clínica aconteceu às 15h, conforme observado, mas o preso só retornou ao estabelecimento às 17h20. Nesse intervalo de tempo, o veículo ficou parado à beira da rodovia.

Diálogos entre os alvos da investigação indicam tentativa, também, de obstruir o trabalho investigatório. O advogado que tinha acesso às senhas do servidor do Judiciário chegou a combinar com o comparsa, conforme demonstram as conversas captadas, uma versão para tentar passar a impressão de que o contato entre eles era mais superficial do que a realidade.

Em bate-papos interceptados, há registro de encontro para acertar o que os dois diriam em depoimento ao Garras (Delegacia Especializada de Repressão a Roubo a Banco, Assaltos e Sequestros).

O próprio advogado chegou a procurar o delegado alvo da pesquisa e se apresentar como o responsável pela consulta. Disse que queria delatar o esquema criminoso de outros colegas.

Entregou o celular, assim como o servidor do Judiciário o fez, porém antes, sugerem o rastreamento tecnológico, apagou conteúdos comprometedores. Porém, é possível a recuperação desses arquivos, pelo menos em parte.

O acesso revelou que esse profissional agia como linha auxiliar do crime do lado de fora. Uma das descobertas foram fotos de joias, produtos de furtos e roubo, às quais teria comercializado, movimentando em torno de 300 mil reais.

Outra advogada, que também tinha relação mais próxima do que a profissional com o servidor do Judiciário, chegou a pagar em seu cartão despesa de hospedagem do funcionário público em hotel de luxo de Bonito.

Esse texto faz referência apenas a pessoas que tiveram a prisão preventiva decretada pela Justiça. Existem outros implicados na operação, que não tiveram ordens de busca e apreensão ou de prisão autorizadas. Ao todo, são 15 profissionais do Direito citados como suspeitos de fazer mais do que o trabalho prevê legalmente.

Também foram implicados um policial penal, que foi preso e um assessor da Defensoria Pública, que está sob investigação, assim como outros dois policiais penais, um deles com identidade ainda não precisada pelo Gaeco.

Diante das suspeitas envolvendo advogados, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em Mato Grosso do Sul criou comissão para acompanhar os desdobramentos da operação “Courrier”.

Na próxima sexta-feira, no dia 48 vence o prazo para o Gaeco apresentar as denúncias contra os investigados que tiveram prisão decretada.

Confira abaixo quem são os personagens citados nesse texto:

preso gravatas
Ed Carlos Rodrigues Dias, o “Heitor”. (Foto: Canal Aberto)

Ed Carlos Rodrigues Dias, “Heitor”, 37 anos: preso que estava na cela 25, onde foram achados os bilhetes ameaçadores e que escreveu ameaça a magistrado de Campo Grande. Foi transferido para a penitenciária federal de segurança máxima de Porto Velho. É considerado preso de alta influência negativa sobre a massa carcerária, com histórico de planejamento de atentados e ameaças a autoridades em Minas Gerais, de onde é originário.

Arqueiro
Edimar da Silva Santana, conhecido como “Arqueiro”. (Foto: Canal Aberto)

Edimar da Silva Santana, 39 anos, “Arqueiro”: interno que foi pego com um celular e um chip na “Supermáxima”. Foragido de Araçatuba (SP), foi preso em junho 2020, em Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai, durante a operação “Exílio”, da Polícia Federal. Também é tido como integrante do comando da facção criminosa e responsável por transmitir ordens para outros comparsas por meio de advogados.

Bruno Ghizzi
O advogado Bruno Ghizzi, que está preso por dar apoio a atividades ilegais de facção. (Foto: Redes Sociais)

Bruno Ghizzi, 30 anos: advogado que usava as senhas de servidor do Poder Judiciário para acessar informações que deveriam ser restritas. Consultou o nome de delegado de Polícia Civil, originando investigação que resultou em sua prisão e de outros colegas. Mesmo tendo apagado registros do celular apreendido, foram localizadas várias comunicações indicando que age fora do presídio como integrante da facção criminosa.

Rodrigo
Rodrigo Pereira da Silva, analista Judiciário. (Foto: Redes Sociais)

Rodrigo Pereira da Silva, 41 anos, analista Judiciário, ex-chefe de cartório da 2ª Vara de Execução Penal em Campo Grande. Forneceu senhas de sistemas de informações ao advogado Bruno Ghizzi e manteve conversas com indícios de irregularidades com outra advogada. Também criou pasta no sistema do Judiciário, sem autorização, com os dados sobre presos da facção transferidos para o sistema prisional federal.

Paula Monezzi
Paula Tatiane Monezzi, advogada. (Foto: Redes Sociais)

Paula Tatiane Monezzi, 35 anos, advogada: suspeita de corromper policial penal, ao custo estimado de 30 mil reais, para entregar aparelho celular ao preso “Arqueiro”. Mantinha relação próxima com os detentos investigados, com visitas frequentes.

Thais
Thaís de Oliveira, Caciano advogada. (Foto: Redes Sociais)

Thaís de Oliveira Caciano, 27 anos, advogada: admite em ligação interceptada que foi a responsável por entregar chip de celular para “Arqueiro”. Também há registros indicando ter sido a pessoa responsável por criar conta de e-mail para os presos usarem o Whatsapp. As conversas indicam que ela e Paula disputavam a preferência do chefe de facção. Thaís também provocava reclamações dos colegas por cobrar barato pelas visitas ao presídio.

Inaiza
Inaiza Herradon Ferreira, advogada. (Foto: Redes Sociais)

Inaiza Herradon Ferreira, 37 anos, advogada: mantinha contato frequente com o ex-chefe de cartório preso e até pagou, com o próprio cartão, hospedagem em hotel de luxo de Bonito. Foi ela quem levou o preso “Tio Doni” para o exame médico, ficando mais de uma hora parada na rodovia antes de voltar para a “Supermáxima”.

Tio Doni
Cristian Thomas Vieira, o “Tio Doni”. (Foto: Canal Aberto)

Chistian Thomas Vieira, “Tio Doni”, 33 anos, custodiado no presídio de segurança máxima da Gameleira, a “Supermáxima”, em Campo Grande. A ele, é apontada o comando do núcleo dos “Sintonia dos Gravatas”, formado por advogados a serviço da facção.

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