O ano de 2021 estava terminando, naquele limbo entre as festas natalinas e a virada do calendário. Dentro e fora da cadeia em Mato Grosso do Sul, criminosos da facção famosa por comandar a barbárie da violência no Rio de Janeiro (RJ), estavam em outro clima.
Tramavam colocar em prática plano de expandir-se no estado, e fazer frente ao bando surgido na década de 1990 nos presídios de São Paulo, tido como a maior máfia do País, com células até na Europa. Estava em gestação uma guerra de facções, tudo indica.
Munição apreendida durante ação do Gaeco de MS contra planos de máfia surgida no RJ. (Foto: Divulgação)
Para cumprir o “desafio” marginal, foi instituído o “conselho dos 13”. Faziam parte dele as lideranças negativas sobre a massa carcerária adepta da quadrilha surgida em terras fluminenses, inclusive com um presidente, ou “01”.
Assim como a rival, essa também cooptou um núcleo jurídico, o “setor dos gravatas”, como você vai ler mais à frente nesta edição da Capivara Criminal. Outro ingrediente em comum das duas organizações criminosas criadas dentro do cárcere é a corrupção de agentes de estado.
A cúpula
O “conselho dos 13”, conforme investigação oficial, tinha nove integrantes do Mato Grosso, estado onde a máfia do Rio de Janeiro domina a arquitetura da criminalidade. Um apenas, então chefe do grupo, é do estado do sudeste. Os outros três são “locais”.
Em pedaço de papel manuscrito localizado, o presidente, ou 01, aparece como sendo Roberto Ricardo de Freitas Junior, o “Betinho”, que foi preso em Copacabana, no Rio de Janeiro, de onde é originário, durante os trabalhos de rua. Estava no regime semiaberto desde agosto do ano passado, depois de cumprir pena em Campo Grande.
“Betinho”, que já chefiou cúpula de facção do RJ em MS, ao ser preso, (Foto: Reprodução vídeo)
No decorrer dos serviços, porém, outra liderança foi identificada, Luiz Élio Gonçalves Filho, de alcunha “Cabeça de Porco” ou “Gideão”. Apontado como membro antigo, ele estava fora da cúpula por ter ficado quatro anos na penitenciária federal de Campo Grande, e quando foi transferido para a Gameleira II, retomou o posto, segundo o que foi investigado.
“Cabeça de Porco” é o interno da penitenciária estadual de Dourados envolvido no episódio do achado de duas armas dentro da prisão, em 2021. A meta era matar adversários da outra agremiação de detentos, segundo as informações da época.
Luis Élio, o “Cabeça de Porco”, que já se envolveu em episódio com armamento dentro de prisão. (Foto: Reprodução de processo)
Por meio do trabalho de 15 meses da operação Bloodworm, foi revelada pelo Gaeco a circulação de comunicado pelo Whatsapp, anunciando o dia 29 de dezembro de 2021 como data de fundação da filial da facção do Rio de Janeiro em Mato Grosso do Sul. O grupo, batizado de “tropa de MS”, trazia a ordem de, a partir de janeiro de 2022, começar o recolhimento de contribuições mensais, as “camisas”, e abrir faturamento em “lojinhas”, gíria para pontos de venda de entorpecentes.
A documentação apresentada à 6ª Vara Criminal de Campo Grande faz recorte histórico dos 40 anos de surgimento e detalha a estrutura montada pelos “filiados”, com setores específicos para inscrições de novos membros, manutenção da disciplina intra e extramuros, além de um “departamento” para organizar as empreitadas fora da lei com a tarefa de arrebanhar dinheiro nas ruas.
Havia destino certo para o valor arrecadado: o “apoio aos irmãos e companheiros” e “ainda poderá ser aplicado na guerra, comprando armas ou mercadorias”.
Região estratégica
Mato Grosso do Sul, para os responsáveis pela empreitada, era uma “fonte rica” de mercadorias para abastecer o Brasil – leia-se mercadorias ilegais – já que o estado se situa na fronteira com Paraguai e Bolívia.
Tal qual uma empresa, só que clandestina e lastreada em infrações à lei e ações violentas, a missão de estruturar o escritório sul-mato-grossense estava dada, calcada na posição estratégica na geopolítica dos crimes transnacionais. já que o estado se situa na fronteira com Paraguai e Bolívia.
Não que não houvesse gente desse organismo ilegal no estado, tanto que volta e meia há informações sobre mortes perpetradas pelo enfrentamento entre os inimigos. Mas o que o Gaeco percebeu foi a intenção de expandir a organização criminosa como nunca havia sido feito.
Relatório de informações do setor de inteligência da Agepen (Agência de Administração do Sistema Penitenciário) havia disparado o alerta de possibilidade de ampliação das iniciativas do grupo, diante do fato de seus adeptos estarem em maioria na penitenciária Gameleira II, no complexo localizado na região do Indubrasil em Campo Grande.
No presídio ao lado, a “Super Máxima”, a Gameleira I, quem tem maioria é a facção paulista. Como não convém misturar os internos, deu-se a divisão.
Celular, a origem da investigação
Foi a partir de relato vindo da administração do sistema prisional estadual, que o Gaeco desvendou a intentona da facção dominante no Rio de Janeiro, graças ao fato de as comunicações terem sido travadas via celular. A partir daí, desde janeiro de 2022, foi desenvolvido levantamento cujo resultado foi a Bloodworm.
Em tese, o celular é proibido no ambiente prisional, porém circula com facilidade, mesmo no complexo considerado o mais seguro de Mato Grosso do Sul, o da Gameleira. Na Gameleira II, apelidada de “Federalzinha” pelos detentos, por causa do esquema de segurança mais severo, foi descoberto o uso de telefones móveis por integrantes do grupo de chefes do plano expansionista da quadrilha do Rio de Janeiro.
Entre 29 de dezembro de 2021 e 3 de janeiro de 2022, foram localizados quatro aparelhos na unidade prisional. Três estavam em alojamentos e um no setor de trabalho.
Se tem telefone no ambiente carcerário, existe corrupção de agente público envolvida, concluíram os promotores do Gaeco.
Através de áudios e mensagens escritadas interceptados, constatou-se que os celulares eram introduzidos no presídio por policial penal que foi preso em Campo Grande durante a operação. Ele chegava a cobrar a importância de R$ 16.500,00 para entregar cada aparelho aos presos.
Desse valor, R$ 15.000,00 referiam-se ao serviço de entrega do item proibido. Outros R$ 1, 5 mil eram o custo do produto.
Dinheiro em espécie foi encontrado durante as buscas. (Foto: Divulgação)
No material acumulado pela operação, existe até a suspeita de que a concorrência entre policiais penais interessados em fornecer itens irregulares aos presos fez o preço da propina cair, para algo em torno de R$ 10 mil.
Outra desconfiança é de que tenha partido de um dos corrompidos a denúncia sobre a presença dos equipamentos de comunicação, numa espécie de vingança.
Três servidores públicos estão implicados na Bloodworm. Dentre eles, as acusações mais sérias são contra Odair Pereira da Silva, atualmente atrás das grades. Conforme a Agepen, ele já estava afastado das funções, em outra unidade penal, em serviços distantes dos custodiados.
Dos quatro celulares encontrados, três tiveram o conteúdo extraído. Em um deles, não houve recurso técnico para tanto. Entre as revelações, a estratégia de atuação da máfia. A logística, de acordo com as conclusões do Gaeco, se baseava nos pilares abaixo:
A – Pela constante filiação de criminosos locais em seus quadros;
B – Pela prática reiterada de crimes como roubos, tráfico de drogas e comércio de armas, auferindo com isso vantagem financeira;
C- Pelo pagamento de contribuição mensal (“camisas”) e pela venda de drogas por conta dos faccionados (“lojinhas”).
“Gravatas”
Outra mecânica usada pelas duas máfias é em relação aos serviços prestados por advogados, indo bem além da representação legal diante da Justiça. Alocados no “setor dos gravatas”, os profissionais da área foram apontados como pombo-correio entre os faccionados da facção interessada em ampliar os tentáculos e suas famílias. Eram responsáveis, ainda, por movimentações financeiras e atuavam em ilícitos como o tráfico de drogas e a corrupção de servidores públicos.
Ou seja, em vez de agir para defender os direitos legais dos clientes, passaram a ser bandidos, mediante pagamento mensal e serviço exclusivo.
Fuga comemorada
Mensagens interceptadas indicam relação fora do serviço de prestação jurisdicional. Numa das conversas, por exemplo, a advogada Isabela Patrícia Miranda da Silva comenta com um preso sobre a necessidade de ir ao estado vizinho, onde a facção é mais forte.
“Partir praquele Mato Grosso que tá faltando gente lá, para comentar um negócio que tá bagunçado”.
Conversa entre preso e advogada
Em outro diálogo flagrado, chega a comemorar a fuga de um criminoso do complexo da Gameleira em Campo Grande.
“ARRASSOU MULEQUE”, traz a transcrição da troca de mensagem entre a “gravata” e um dos foragidos.
Conversa entre advogada e detento fugitivo
No dia 26 de junho de 2022, um domingo (domingo), os internos Nelson Cordeio Junior e Marcos Henrique Menezes Rodrigues escaparam do Centro Penal Agroindustrial Gameleira, presídio de regime semiaberto contíguo às unidades de regime fechado. Outros três tentaram, mas não conseguiram. Houve tiroteio nesta data.
Na fala com a advogada, os foragidos pedem para atenção aos que ficaram. Ela se compromete e ainda encerra o diálogo com mais palavras de alegria pela fuga.
“Sucesso, arrasou, parabéns!”, foi a frase, de acordo com a investigação jornalística da Capivara Criminal.
Diálogo entre foragido e advogada.
Estagiário no mesmo escritório, o marido dela, Renan Maicon Carneiro da Silva, também é indicado como apoiador do grupo ilegal. O casal foi preso em Dourados.
É creditado a Hariadyni Halessa de Almeida Lobado, advogada de Mato Grosso, papel relevante na organização, notadamente os contatos e recados mais importantes dos chefes do “conselho dos 13”. O mandado de prisão dela foi cumprido em Várzea Grande (MT), onde mora.
No Rio de Janeiro, outra advogada foi presa na Barra da Tijuca. Camila Vieira da Silva viveu em Campo Grande durante toda a fase de apuração. Nos últimos meses, se mudou para o Rio.
Indicada como caixa da organização, chegou a custear a fuga de dois criminosos acusados de uma série de roubos na cidade de Rio Brilhante, conforme o Gaeco.
Em boletim de ocorrência confeccionado após os fatos, é citado o nome dela como a pessoa responsável por transferir R$ 5 mil ao taxista que carregou os foragidos, ambos faccionados.
O quinto advogado envolvido é de Mato Grosso do Sul, Marcio Alex Batista de Campos. Só em 2022, esteve 18 vezes no complexo da Gameleira. Nesse período, atendeu mais de uma centena de internos ligados ao grupo criminoso.
É suspeito de dar apoio aos bandidos tanto para a comunicação, quanto para conseguir itens proibidos, e ainda para a atividade de tráfico de drogas.
Ao “setor dos gravatas”, conforme as descobertas do Gaeco, cabia uma espécie de serviço social bancado pela irmandade do crime, com distribuição de kits de higiene e outras mercadorias permitidas para aqueles sem condições de se manter no cárcere.
Em apenas uma oportunidade, uma das “gravatas” tinha 40 kits para levar na penitenciária.
Todas as buscas e prisões foram acompanhadas por representantes da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
“No cumprimento do seu papel fiscalizador da atividade profissional, serão ainda instaurados com urgência processos éticos-disciplinares. Por sua natureza, os processos tramitarão em absoluto sigilo, respeitando-se as garantias constitucionais”, informou a entidade em nota à imprensa.
Comunicado publicado pela OAB/MS em 5 de maio
Quase cem prisões
Equipe do Gaeco em um dos endereços visitados em Campo Grande.(Foto: Divulgação)
São grandiosos os números da operação Bloodworm. O Gaeco, com apoio das forças de segurança estaduais, foi às ruas em Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rio de Janeiro, São Paulo, Distrito Federal e Goiás.
Em Mato Grosso do Sul foram concedidas pela Justiça 71 ordens de prisão, a maioria de pessoas encarceradas. No Mato Grosso, foram quinze prisões expedidas, no Rio de Janeiro mais três. DF, SP e Goiás tiveram uma ordem de reclusão a cumprir cada.
Houve ainda o cumprimento de 38 mandados de busca e apreensão, para recolhimento de provas. Armas, dinheiro e computadores estão entre os materiais apreendidos.
Como há réus presos, entre eles advogados, o Gaeco tem até o dia 19 de maio para apresentar a acusação à Justiça. Os investigados podem responder pelos crimes de organização criminosa, corrupção ativa e passiva, e outros tipos penais correlatos.
Larva vermelha
O nome da operação é em referência à larva vermelha cuja presença em lagos indica que algo de errado pode estar ocorrendo pois está faltando oxigênio no ambiente.
Jornalista há 11 anos, Geisy Garnes assume a Capivara Criminal e, junto com ela, o compromisso de trazer ao Primeira Página detalhes sobre histórias e personagens de crimes que mobilizaram a sociedade. A coluna tem base em apurações policiais e do Ministério Público, além de processos na Justiça, tudo sob o olhar de quem dedicou anos de profissão ao jornalismo policial.