Em memória das meninas de Sorriso
Quando uma mulher perde a vida pelas mãos de um homem, todas nós morremos um pouco
Sempre achei que tinha um bom preparo emocional para segurar o choro ao vivo. Jornalistas lidam com a tragédia em estado bruto. Nós apuramos detalhes, escolhemos as palavras, borramos imagens fortes, protegemos vítimas e levamos até você o que precisa ser dito. O que não é dito, é o quanto esse processo é doloroso para quem sofre com a dor do outro. Não há carreira longa que te deixe calejado o suficiente para não perder o sono com a dor inimaginável, causada pela leviandade de alguém.
Quando chegou a notícia da morte da família de Sorriso, perdi o ar.
São tantos anos trabalhando em defesa da mulher, sofrendo ao noticiar cada feminicídio, para mim, montar essa cena na cabeça é impossível. Uma dor sem tamanho causada por um único homem, um criminoso, com histórico de estupro, que espreitou a rotina daquelas meninas. Entrou na casa, abusou e tirou a vida de todas. Duas eram crianças. É tão hediondo, que a gente não alcança sequer a explicação, não imagina, não realiza.
Toda vez que eu digo que o machismo mata, recebo uma chuva de críticas.
Sou acusada de demonizar os homens, de generalizar, até de misândrica já me taxaram. E aí eu te pergunto: quantas vezes você já viu uma mulher fazer a mesma coisa?
Temos 34 feminicídios registrados em Mato Grosso em 2023. Quantas mulheres matando seus maridos ou ex-namorados você viu esse ano?
O que faz um homem achar que pode dispor do corpo e da vida de uma mulher, das suas filhas, e simplesmente voltar para casa, continuar sua vida como se não tivesse feito nada de errado, é justamente o machismo. O desprezo pelo feminino, e essa certeza de que mulheres estão no mundo unicamente para servir. É uma verdade difícil de engolir, mas que precisa ser compreendida. Conscientização é isso, reconhecer o problema, aceitar e se incomodar o suficiente para mudar a realidade ao redor.
É impossível não pensar: e se fosse comigo? E se fossem minhas filhas? E se fosse eu o pai preocupado, pedindo ajuda por áudio para contatar a família, e recebendo a notícia?
A gente se dói, porque se coloca no lugar do outro.

Pela primeira vez em 15 anos, não consegui concluir minha fala no jornal. Vinha segurando o choro desde o começo, fazendo meu trabalho, que é minha maneira de honrar as pessoas cujas histórias conto. No ponto final, chorei o choro incontido, de medo, de tristeza, dessa sensação de perigo constante da qual uma mulher nunca se livra.
Minha mãe criou as 3 filhas sozinha e ela passava as noites andando dentro de casa, verificando janelas e portas, fechaduras, trancas, dormia de luz acesa. Naquela época, no interior do RS, as casas não tinham portão. Nunca entendi por que ela desconfiava de todo mundo, achava exagero. Ontem, eu entendi.
Enquanto o machismo for naturalizado, nenhuma mulher será livre.
Enquanto um estuprador foragido estiver observando uma mulher na rua, enquanto o psicopata estiver solto por falta de vaga, enquanto o feminicida voltar para casa 11 meses depois do crime usando apenas uma tornozeleira, a justiça terá falhado miseravelmente com as mulheres. Isso é uma vergonha, um vexame para a evolução.
É horrível sentir medo simplesmente por existir.
Hoje não vamos encerrar essa coluna com uma reflexão, nem uma mensagem positiva, de empoderamento, de coragem.
Dessa vez, vamos apenas silenciar.
Silêncio, como uma vela acesa, em memória das meninas de Sorriso.
Comentários (3)
Triste! Que o Espírito Santo de Deus venha consolar o coração do pai, do esposo com a paz que somente Jesus pode nos dá.
O amor acabou. Somente o amor pode mudar os corações para um mundo melhor. Deus tenha misericórdia das nossas vidas e nos livram do homem mal e sanguenário. Quem não tem dominio próprio, tem DEMÔNIO próprio.
Sábias palavras,apesar do ocorrido,uma lamentável tragédia,qual mulher não se colocaria mesmo no fundo da alma a dor dessas duas mulheres e dessas duas crianças inocentes , um terror, espero que a justiça seja feita e que esse canalha pague pelo o q cometeu apesar que nossas leis tem muitas falhas .Mas a de Deus jamais falha .Muita tristeza e que descanse em paz estás quatros mulheres ?
Sou assistente social, atendo varias mulheres vitima de violencia que estao expostas ao risco de feminicidio, porque o autor dos fatos continua solto ameaçando, tirando delas a liberdade e e a pazembora estejam sob medida protetiva.