Capivara Criminal

"Escola Base", o jornalismo e o propósito da Capivara Criminal

Este domingo, 20 de novembro, é de muito significado para quem escreve esse texto. É dia de colocar no ar um desafio autoproposto, o de exercer o ofício do jornalismo para além do trabalho diário de registrar os fatos, ao qual me dedico desde antes de concluir a faculdade, em 1996. São mais de 25 […]

Este domingo, 20 de novembro, é de muito significado para quem escreve esse texto. É dia de colocar no ar um desafio autoproposto, o de exercer o ofício do jornalismo para além do trabalho diário de registrar os fatos, ao qual me dedico desde antes de concluir a faculdade, em 1996. São mais de 25 anos.

A estreia vai ser diferente, como elas devem ser. Começo esse diálogo com o público do Primeira Página descrevendo uma inspiração, um exemplo que carrega em si um parodoxo: ensina ao mesmo tempo o que não se deve fazer e aquilo que é obrigação do jornalista responsável com os efeitos de seu trabalho.

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Valmir Salaro em um dos cenários onde ocorreram as gravações do documentário. (Foto: Divulgação)

Quando falo em inspiração, estou me referindo aos desdobramentos recentes do episódio marcante da carreira do colega Valmir Salaro, consagrado jornalista dedicado às coberturas policiais.

Salaro foi o primeiro repórter a noticiar o “Caso Escola Base”, no Jornal Nacional. A informação apontava uma escola em São Paulo sob investigação de abusos sexuais contra alunos de quatro anos. A denúncia era infundada, mas o escândalo atravessa décadas.

Dado o furo jornalístico, foi um arrastão de repórteres até o prédio da escolinha e até a casa dos proprietários do negócio. Houve depredação de imóveis, prejuízo material. Acentuadamente, teve destruição de algo impalpável, as reputações das seis vítimas do engano, os quatro donos da escola e um casal de pais de estudantes.

Se a polícia errou, com declarações cabais sobre a existência de pedofilia, os veículos de imprensa embarcaram na tese incipiente, promovendo manchetes sensacionalistas. Lia-se, em letras garrafais, “Kombi do sexo”, para se referir ao veículo de um dos apontados como suspeitos, o motorista responsável pelo transporte das crianças.

Trocado o delegado responsável, as acusações se revelaram inexistentes.

O estrago na vida das pessoas indicadas estava feito. Nem as indenizações nem as correções publicadas nos jornais e veiculadas na tv e no rádio tiveram o poder de anular os reflexos negativos.

A referência ao caso sempre foi mais dura para Valmir Salaro, apesar do erro compartilhado com inúmeros nomes de peso na imprensa.

Agora, 27 anos depois, o jornalista decidiu fazer algo raro. No documentário “Escola Base, Um Repórter Enfrenta o Passado”, em cartaz na Globoplay (trailer abaixo), percorre os caminhos da cobertura.

Em quase duas horas de produção, é possível revisitar o trabalho errático feito na década de 1990, perceber quão frágil e desastrada foi a ação policial, de início apenas reproduzida, sem filtro, por quem deveria fazer diferente. Jornalismo tem técnica e princípios básicos, que foram atropelados na ocasião.

Salaro admite isso, e faz mais. Procura as vítimas do grande equívoco, pede desculpas, ouve o desabafo e as palavras delas, quase trinta anos depois.

É tudo muito tocante. Fica estampado no vídeo o estrago na vida das pessoas, de inúmeras formas.

Componho esse texto sob a emoção de ver o testemunho de um colega experimentado sobre o quanto a atuação jornalística tem impacto na sociedade, para o mal e, felizmente, para o bem.

Foi quase uma sessão de terapia, de reflexão, um reforço para inspiração de levar à frente essa coluna.

A Capivara Criminal surgiu da vontade de contar histórias sobre o mundo jurídico e policial com detalhamentos e olhares que, no modelo de hard news, o cotidiano nem sempre permite. O nome vem do jargão cujo significado é puxar a ficha de alguém e ver suas dívidas com a polícia e a justiça. Cabe também um pouco de regionalidade, homenageando o bicho querido por mato-grossenses e sul-mato-grossenses.

O foco serão os personagens dos casos relatados. Por isso “Escola Base” é um espelho a ser olhado o tempo todo: não fazer o que foi feito lá atrás, e perseguir o que Salaro e equipe praticaram agora: ir atrás da versão de todos os envolvidos para formar um mosaico de informações ao público.

Com essas lições em mente, me comprometo a ocupar esse espaço. Está posto aqui um acordo e um propósito.

Nos encontramos no próximo domingo!

Este conteúdo reflete, apenas, a opinião do colunista Capivara Criminal, e não configura o pensamento editorial do Primeira Página.