Capivara Criminal

Fila da justiça anda diferente a cada Gabriel assassinado

Família de jovem executado nas Moreninhas aos 22 anos apela a mudança de delegacia na esperança de caso avançar em Campo Grande.

Nesta edição, a Capivara Criminal trata pelo segundo domingo seguido da violência que está abreviando a vida de homens bastante jovens em um dos núcleos mais populosos de Campo Grande, o conjunto de bairros Moreninhas, na região sul da cidade.

Na casa dos 20 e poucos anos, eles estão dando a vida numa disputa sangrenta pelo controle da venda de drogas. O mais velho a aparecer nas próximas linhas desse texto está com 28 anos. Todos têm, ou tinham, histórico policial relacionado a tráfico, posse de arma ou crimes de sangue.

Gabriel Brandão Mendonça
Gabriel Brandão Mendonça, assassinado em novembro de 2022 em Campo Grande. (Foto: redes sociais)

A vítima em questão se chama Gabriel, assim como a do episódio detalhado na semana passada. Há fortes suspeitas de o mesmo grupo ser responsável pelo assassinato dos rapazes de nome igual.

Porém, o encaminhamento das investigações teve rotas antagônicas.

Gabriel Brandão Mendonça (na foto acima), morreu crivado de 15 tiros no dia 9 de novembro de 2022.

Tinha 22 anos.

Gabriel Jordão da Silva
Gabriel Jordão da Silva, assassinado no meio da rua nas Moreninhas (Foto: rede social)

Gabriel Jordão da Silva, personagem da coluna passada, foi executado três meses depois, em primeiro de fevereiro do ano passado.

Estava com 23 anos.

Um dos suspeitos foi preso na sequência, e outro capturado cinco meses depois. O caso já virou processo no Judiciário, e está no aguardo da realização do júri dos dois réus pelo homicídio de Gabriel Jordão. Um terceiro participante ainda está sendo procurado.

Para essa família, é possível ver contornos de justiça se formando.

Ilustração da deusa da Justiça 1
Ilustração da deusa Themis, símbolo da justiça (Feito com inteligência artificial)

Inquérito arquivado

Decorrido mais de um ano e meio da partida violenta, continua repleto de perguntas o letreiro imaginário à vista dos parentes do Gabriel sobre o qual se desdobra a coluna de hoje.

Os matadores seguem impunes, apesar das hipóteses levantadas horas depois do ataque, com a identificação de possíveis envolvidos.

Ao vasculhar processos para desenhar o trajeto da investigação sobre a morte de Gabriel Jordão, a coluna resgatou o caso do jovem homônimo.

Sem identificar qualquer responsável, o inquérito foi simplesmente arquivado em agosto de 2023.

Faltou perícia essencial

A cargo da 4ª Delegacia de Polícia Civil, localizada na Moreninha II, o trabalho policial avançou muito pouco, percebe-se facilmente pelo arquivo enviado ao Poder Judiciário.

Sequer foi feita a perícia no local do crime, essencial em qualquer caderno de provas, como você pode ler em trecho de documento abaixo.

Relatório sobre caso Gabriel Menonça
Trecho de relatório de investigações informa que não foi feita perícia no local de crime (Foto: reprodução de processo)

A justificativa dada foi de que os parentes do jovem morto não souberam informar onde exatamente ocorreu a execução, enquanto estavam na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) das Moreninhas, para onde o filho foi levado por um desconhecido, já agonizando.

Não há registro de uma nova visita de equipe responsável pelo inquérito à cena do crime para estabelecer a arquitetura do episódio fatal.

Naquele dia, logo após o atentado, equipe do GOI (Grupo de Operações e Investigações) foi às ruas para as primeiras diligências, na tentativa de prender os assassinos, como é usual na atuação da Polícia Civil em Campo Grande.

Pelo regime estabelecido na cidade, as ocorrências de homicídio primeiro são registradas por uma das duas Depac (Delegacias de Pronto Atendimento Comunitário), uma no Centro e outra no bairro Tiradentes. Simultâneamente, o GOI age na tentativa de captura dos suspeitos.

Só depois o inquérito é distribuído, ou para a delegacia de área ou para a DHPP, dependendo da complexidade.

O relatório de uma dupla de investigadores do GOI – com as descobertas feitas na sequência dos fatos envolvendo o rapaz de 22 anos -indicava dois possíveis autores, de acordo com o que ouviram no entorno do local do crime, a frente da casa da esposa da vítima, na rua Sambacuim.

A cena da morte

Conforme o relato da jovem, o marido estava saindo, de motocicleta, quando um veículo de cor vermelha ocupado por quatro homens mascarados surgiu e os atiradores o atacaram. Foram 15 perfurações.

À dupla identificada pelos policiais do GOI, foram acrescentados mais dois suspeitos, então.

Surgiu o dado sobre dois carros usados pelos pistoleiros, um Corsa, no qual estariam os atiradores, e um Gol, dando apoio. Ambos os veículos umeram vermelhos.

No inquérito arquivado, apenas um suspeito foi ouvido, Diego Felype Pereira de Jesus, apelidado de “Gordinho”, então com 19 anos.

Diego Felype Pereira de Jesus
Diego Felype, que foi ouvido sobre a morte de Gabriel Brandão Mendonça (Foto: reprodução de processo)

Ele apresentou um álibi, dizendo que seu carro, um Gol vermelho, deu defeito na data da execução, ficando estacionado o dia todo na frente da casa de um amigo, no bairro Paulo Coelho Machado, próximo do lugar do crime.

Afirmou ainda ter estado numa lanchonete com a esposa. Segundo o rapaz, o casal havia acabado de perder um bebê de oito meses de gestação.

A equipe da 4ª DP confirmou a passagem dos dois pelo estabelecimento na tarde de 9 de novembro, horas antes do crime portanto, com a coleta de imagens de câmera de segurança.

Essa imagem foi a única angariada. Não surgiu mais nada de vídeos que pudessem ajudar a esclarecer o caso, comprovando de forma detalhada a alegação do investigado de estar em outro lugar no horário do atentado.

Foram tomados mais três depoimentos apenas, informa a autoridade policial no relatório final da investigação encaminhado ao Judiciário.

Além da mãe da vítima e da namorada, houve insistência na oitiva em solo policial da enfermeira responsável pelo atendimento de emergência a Gabriel. A providência se revelou incapaz de trazer algo significativo para a tarefa de localizar os matadores.

A profissional tinha dado seu relato à Polícia Militar anteriormente e nada acrescentou.

Em duas páginas de relatório, o Poder Judiciário é comunicado pela delegacia da impossibilidade de identificar autoria, no mês de julho de 2023.

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O MPMS, dono da acusação segundo as leis brasileiras, decidiu-se pelo arquivamento, sem cobrar qualquer diligência, como é prerrogativa do promotor.

“Ao final da investigação policial, não foram colhidos novos elementos suficientes para embasar a inicial acusatória, uma vez que não houve uma outra linha de investigação plausível, tampouco foram localizados suspeitos envolvidos com a prática delitiva narrada acima.”

Parecer do MPMS

“Tendo em vista, ademais, que as investigações policiais não viabilizaram a colheita de evidências que pudessem compor o conjunto probatório de eventual inicial acusatória. Em outras palavras, não há como este Órgão Ministerial oferecer Denúncia, pois, conforme disposto no Artigo 41 do Código de Processo Penal, para o oferecimento da inicial acusatória é necessária a identificação do autor e a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, critérios aos quais o presente caso não atende integralmente”, continua o documento.


“Assim, não há alternativa, senão o ARQUIVAMENTO do presente feito.”

Parecer do MPMS

O juiz titular da 1ª Vara do Tribunal do Júri, Carlos Alberto Garcete, não teve muito a fazer além de acatar o requerimento em 22 de agosto de 2023.

Se havia algum vislumbre de justiça para a família, pareceu bem mais distante nesse instante.

Ilustração da deusa da Justiça
Ilustração da deusa da justiça. (Feita com inteligência artificial)

Inconformismo

No dia 20 de outubro de 2023, petição assinada pelo pai de Gabriel Brandão Mendonça é protocolada na Justiça. Ele não havia desistido de descobrir os assassinos do filho e cobrou providências.

É incomum o teor do pedido. Sabendo dos resultados das investigações da morte de Gabriel Jordão, já detalhada na coluna, a família correlaciona os fatos.

Depois de crítica à condução do inquérito que foi arquivado – como exemplo à não realização de depoimentos de três suspeitos – a petição observa que a família tomou ciência “por meio de pessoas que se recusar a depor, em razão de manifesto temor de um grupo de criminosos que tem aterrorizado a região das moreninhas, que o quarto envolvido no assassinato de seu filho, trata-se de pessoa de Wellington da Silva Bernardo.”

Mais conhecido como “Tantan”, ou Yago Prado, como se apresenta, esse homem tem 28 anos e sua história foi o fio condutor da edição passada da Capivara Criminal.

“Tantan” está preso pela morte de Gabriel Jordão da Silva, indicado como o mentor do crime em razão de briga pelo controle da venda de drogas nas Moreninhas. Pelo que foi apurado pelas fontes policiais, ele seria no momento o maior fornecedor de entorpecente aos pontos de venda das Moreninhas e adjacências.

Foragido do regime aberto e procurado por assassinato, acabou capturado em Cianorte, no Paraná, no dia 13 de julho do ano passado, usando identidade falsa e se passando por entregador de gás de cozinha.

Leia aqui a coluna sobre Tantan

Ao lado dele como réu, está Ryan Victório Alencar da Silva, o “Amarelinho”, de 21 anos, capturado em fevereiro do ano passado. Ele confessou ter participado da morte de Gabriel Jordão da Silva e implicou Wellington Bernardo na situação.

Tantan e Ryan
Tantan, de branco, e Ryan, de azul, estão presos por execução (Foto: Reprodução de processo e redes sociais)

“Amarelinho” era exatamente o outro suspeito relacionado pelo GOI no primeiro relatório das diligências no caso Gabriel Brandão Mendonça, de novembro de 2022. Como já escrito, não chegou a ser ouvido.

Ryan responde por outro homicídio, de Ronald Felipe Cavalheiro Cardoso, o “Fefê”, atingido por 13 tiros, no dia 26 de junho de 2022. Aos 19 anos, Fefê morreu 11 dias depois na Santa Casa.

Ao lado de “Amarelinho”, descobriu a investigação, estava Diego Felype, à época menor de idade. Por isso, não foi denunciado pelo homicídio de Fefê, e sim por ato infracional. Faltavam menos de 10 dias para completar 18 anos.

Atualmente, “Gordinho” está preso, por ter sido flagrado com quase meia tonelada de maconha.

“Tantan* e um outro jovem foram os outros indicados aos policiais como participantes da emboscada. Também sequer foram chamados a depor.

Transfere, por favor

“Faz-se necessário que os autos sejam desarquivados e remetidos para a Delegacia Especializada de Homicídios, em razão de que na mencionada especializada tramitou e tramitam procedimentos investigatórios dando conta da existência do grupo criminoso composto por indivíduos citados diretamente como responsáveis pelo assassinato do filho do requerente.”

Petição da família de Gabriel Mendonça à Justiça
Pedido para desarquivar inquérito sobre Gabriel Mendonça
Trecho de petição em que família pede desarquivamento de inquérito. (Foto: reprodução de processo)

Documentos do MPMS pedindo o desarquivamento do caso e do juiz Carlos Alberto Garcente determinando a medida estão no processo.

Como consequência, ofícios devolvem os autos para a 4ª Delegacia de Polícia, a origem da peça investigatória.

Ainda assim, a vontade dos parentes de Gabriel vai ser feita, mas por outro mecanismo.

DHPP requisitou inquérito

Sem conhecimento do pedido da família, a DHPP (Delegacia Especializada de Repressão a Homicídios e Proteção à Pessoa) requereu no dia 26 de outubro de 2023 o desarquivamento dos autos, diante de suspeita derivada do inquérito responsável pela prisão de “Tantan” e “Amarelinho”.

Nas palavras do delegado José Roberto de Oliveira Junior, adjunto da Delegacia de Homicídios, “uma das armas de fogo utilizada para execução do crime foi uma de calibre 9mm, bem como que, na ocasião do flagrante delito, uma pistola 9 mm foi apreendida.”

Cápsulas caso Gabriel Mendonça
Cápsulas 9mm recolhidas no local onde Gabriel Brandão Mendonça foi morto. (Foto: reprodução de procsso)

“Como visto, os elementos de informação supra indicam que a pistola calibre 9mm apreendida na ocasião do homicídio de Gabriel Jordão pode ser a arma de fogo que teria sido utilizada no homicídio de Gabriel Brandão, sendo portanto imprescindível a realização de microconfrontação balística.”

Ofício da DHPP à Justiça

Está sendo aguardado o resultado da perícia.

Reside nesse documento uma grande possibilidade de a família de Gabriel Brandão Mendonça começar a ver se construindo o verbete justiça num outdor virtual.

Ilustração da deusa da Justiça 3
Ilustração da deusa da Justiça (Feita com inteligência artificial_

É preciso registrar que essa confrontação só vai ser possível porque no dia do assassinato, os familiares do jovem recolheram duas cápsulas de munição calibre 9 mm deflagradas.

Como não foi feita perícia no local de crime, para recolher vestígios e deliminar a dinâmica do ocorrido, seria inviável essa providência importantíssima para descobrir quem matou Gabriel.

Em consulta à DHPP sobre os próximos passos dessa peça inquisitória, a informação dada à coluna é de que detalhes só serão fornecidos após a conclusão dos trabalhos, para não prejudicar o andamento.

Muro com símbolo da DHPP
Muro com o símbolo da DHPP em Campo Grande (Foto: Marta de Jesus)

O que a PC diz sobre falha na perícia

A Capivara Criminal procurou a Polícia Civil para um posicionamento sobre a falha na perícia no inquérito da morte de Gabriel Brandão Mendonça. Confira abaixo as explicações:

“Quanto à ausência de exame de local de crime no dia do ocorrido, relatamos que a vítima foi socorrida pelos seus familiares, os quais também apresentaram algumas cápsulas de munição. Neste caso o local de crime não foi preservado, o que impossibilitou a realização adequada dos exames periciais, visto que o local de crime era inidôneo. Nesse sentido, é prerrogativa do delegado de polícia plantonista avaliar a situação e tomar as medidas necessárias para garantir a efetividade da investigação.”

Nota da Polícia Civil à Capivara Criminal

“No que diz respeito à investigação interna sobre o erro, informamos que é prática padrão da Polícia Civil conduzir uma apuração interna sempre que ocorrem falhas ou irregularidades durante o curso de uma investigação. Esta apuração é realizada pela Corregedoria da Polícia Civil, a qual tem a responsabilidade de investigar condutas inadequadas dos policiais e garantir a integridade e a correção dos procedimentos”.

Nota da Polícia Civil à Capivara Criminal

Como denunciar?

“Quanto à orientação para a família da vítima em relação à denúncia da incorreção, esclarecemos que a Corregedoria da Polícia Civil é o órgão competente para receber e investigar reclamações sobre a conduta de policiais. Além disso, a Ouvidoria da Polícia Civil também está à disposição para receber manifestações da sociedade e encaminhá-las aos órgãos competentes para as devidas providências”.

Nota da Polícia Civil à coluna

Confira nos links os meios de contato com a Ouvidoria e a Corregededoria

Este conteúdo reflete, apenas, a opinião do colunista Capivara Criminal, e não configura o pensamento editorial do Primeira Página.