Letalidade policial em alta e o impasse sobre quem investiga
Resposta à execução de soldado paulista colocou o tema letalidade policial em evidência e a coluna Capivara Criminal explica como está a questão em MS
A partir de 28 de julho de 2023, quando o soldado paulista Patrick Reis , de 30 anos, morreu pelas mãos de um sniper do tráfico de drogas – provocando reação tão enérgica quanto polêmica contra o crime na Baixada Santista – o tema “mortes em confronto” está latente. A operação Escudo, resposta à execução sumária do policial militar, já produziu catorze óbitos de suspeitos de crimes, na situação usualmente denominada confronto, antigamente tipificada como auto de resistência, termo dos tempos de governo ditatorial, só abandonado por determinação legal há menos de uma década.

O nome técnico passou a ser morte por intervenção de agente de estado, numa espécie de maquiagem linguística. Tem até sigla, cravada por especialistas em segurança pública: MDIP (Morte por Intervenção Policial). Em São Paulo, esse tipo de intercorrência aumentou 26% sob o novo governo, de Tarcísio de Freitas, conforme dados repisados pela imprensa e por organismos de defesa dos direitos humanos.
Dedicada à cobertura regional, a Capivara Criminal debruça-se sobre tal recorte da segurança pública em Mato Grosso do Sul, onde os dados caminham para um recorde na última década, conforme a estatística da plataforma de dados da Sejusp (Secretaria de Justiça e Segurança Pública).

- No ano de 2023, são 57 casos de morte por intervenção policial em MS.
- Desde 2013, é o segundo maior número, só superado por 2019, com 58 registros.
- Considerando que ainda faltam cinco meses para acabar o ano, o novo recorde é totalmente factível.
- Em Campo Grande, o número de óbitos durante diligências das forças de segurança já é o maior desde 2013, com 29 registros de janeiro até o começo de agosto.
- Desde 2013, conforme a série histórica dos dados da Sejusp, o ano de 2019 também havia sido o de maior ocorrência em Campo Grande, com 24 boletins de ocorrência de morte em decorrência de intervenção policial.
Na comparação com o ano de 2022, a estatística indica aumento de mais de 30% na letalidade policial em Mato Grosso do Sul, motivando inclusive protesto ocorrido em Campo Grande no mês passado, ilustrado no vídeo acima.
Em sua maioria, são ocorrências envolvendo ações de PMs, consequência óbvia por ser a força de repressão nas ruas.
Quem investiga?
A escalada da estatística coincide com o acirramento de uma celeuma entre Polícia Civil e Polícia Militar sobre a prerrogativa de investigar as mortes provocadas por tiros saídos das armas de militares.
Nos últimos dois anos, os casos estão sendo objeto de apurações exclusivamente pela Corregedoria da própria corporação, com o aval da Sejusp, e a despeito de questionamento da parte da Polícia Civil, para quem a tarefa de identificar se houve legitimidade na decisão de usar a força letal contra suspeitos deveria ficar sob a tutela de um delegado, e não de oficiais da própria PM.
No frigir dos argumentos, para os integrantes da Polícia Civil, conservar o trabalho a cargo apenas da Polícia Militar vai contra o poder delegado pela Constituição Federal de 1988 em relação a crimes dolosos contra a vida e coloca suspeição sobre o combate à letalidade policial.
“Ilegalidades na coleta das primeiras provas podem corromper a saúde jurídica das futuras provas, tornando-as imprestáveis, seja em razão de vícios jurídicos que podem advir (quebra da cadeia de custódia, violação dos protocolos inerentes à investigação de crimes dolosos contra a vida) ou da precariedade de sua produção, acarretando riscos de impunidade em eventual ação penal”, pontua a entidade em ofício à Sejusp.
Para a Polícia Militar, há embasamento legal suficiente para que todo o trabalho de levantar provas sobre as circunstâncias da morte de suspeitos de infrações à lei, durante o trabalho, seja feita pela corporação, e depois encaminhada para os trâmites da Justiça Comum, por meio do Tribunal do Júri.
“Com o advento da lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (Pacote Anticrime) foram realizadas alterações no Código de Processo Penal Militar dentre as quais a inclusão do artigo 16-A, que na visão apresentada pela Corregedoria-Geral da PMMS, visa a reforçar o entendimento de que incumbe as Polícias Militares a apuração do crime doloso contra a vida praticado por militar contra civil”, consta de documento oficial sobre a disputa de atribuições.
“Nos casos em que servidores das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares figurarem como investigados em inquéritos policiais militares e demais procedimentos extrajudiciais, cujo objeto for a investigação de fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício profissional, de forma consumada ou tentada, incluindo as situações dispostas nos arts. 42 a 47 do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar), o indiciado poderá constituir defensor”, diz o artigo artigo 16A da lei do Pacote Anticrime, proposto pelo ex-ministro da Justiça Sérgio Moro (União Brasil), senador pelo Paraná.
Esta citação acima está inclusa no documento resultante do capítulo mais recente do embate entre as polícias estaduais de Mato Grosso do Sul. Trata-se de parecer da PGE (Procuradoria Geral do Estado), transformado em decisão e oficializado no dia 11 de julho de 2023.
A peça traz a orientação de manter os inquéritos sobre o uso da força letal por PMs apenas na Corregedoria da corporação militar, determinação repassada a todas as chefias da área de segurança, como resultado de um debate iniciado em dezembro de 2021. Vale para a PM e também para o Corpo de Bombeiros Militar.
O estopim
Em novembro de 2021, uma rusga entre policiais civis e militares se formou a partir de incursão do Batalhão de Choque para prender traficantes em Campo Grande, com saldo de um morto, no contexto de reação à injusta agressão, denominação mais recente para a extinta “resistência à prisão”.
Depois da ação de policiais militares, duas delegacias da Polícia Civil abriram inquéritos, um para o crime de tráfico em si, na Denar (Delegacia de Narcóticos) e outro para apuração da morte do suspeito, na DHPP (Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa). Até então, essa era a conduta rotineira.
O caldo entornou quando os policiais militares se negaram a entregar a arma usada aos civis, sob argumento de estar apreendida para os trabalhos do IPM (Inquérito Policial Militar).

Abriu-se, então uma disputa judicial, depois de um dos militares pedir o trancamento do inquérito na DHPP. Na Auditoria Militar, o pedido foi acatado pelo juiz Alexandre Antunes. No TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul), acabou por ser derrubado, dando o sinal para a continuidade do inquérito na polícia judiciária civil.
Outro caso parecido ocorreu no interior de Mato Grosso do Sul e o secretário de Justiça e Segurança Pública, Antônio Carlos Videira, acabou por ser provocado. Dele, saiu a orientação, verbal, validando o entendimento da Polícia Militar.
Inconformada, a Adepol (Associação dos Delegados de Polícia Civil), encaminhou expediente solicitando parecer da PGE (Procuradoria Geral do Estado) sobre o tema. Ofício de teor semelhante foi encaminhado pela Delegacia-geral da Polícia Civil.
Instaurou-se, no âmbito administrativo, um conflito positivo de competências, para decidir como ficaria a questão.
Tal qual uma ação judicial, as partes foram chamadas para dar seus argumentos. Foi criado um grupo de trabalho, com a participação do MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) e do TJMS.
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A Polícia Civil elencou dez pontos em favor de sua tese, a começar pelo parágrafo 4 do artigo 124 da Constituição Federal, sobre as atribuições da Justiça Militar, das quais são excluídos os crimes de competência do júri, em caso de vítimas civis.
“Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças”.
Constituição Federal
São relacionados pela Adepol, ainda, decisões de outros estados em que se manteve na Polícia Civil a responsabilidade de avaliar se houve crime na situação de morte em ação policial, em unidades da federação como Goiás e São Paulo.
Da parte da Polícia Militar, onze pontos foram levantados, entre julgados de tribunais superiores e textos de leis, para sustentar as investigações na própria Corregedoria.
O ponto central dessa polêmica é a definição sobre o que é e o que deixa de ser crime militar.
Para a Polícia Militar, existe todo um regramento incluindo a morte de um civil por um de seus integrantes entre as situações a serem processadas, na fase de apuração, pela Corregedoria da Corporação. Depois, com o inquérito terminados, as conclusões são relatadas à Auditoria Militar, à qual caberia remeter para o trâmite do Tribunal do Júri.
A investigação jornalística da Capivara Criminal indica que, neste ano, não se tem notícia de inquéritos desse tipo derivados em ação penal.
Na decisão da PGE, foi vencedora a tese da PM, a partir do parecer elaborado pelo procurador Rafael Antônio Mauá Timóteo.
No momento, afirma o procurador, o ideal é manter entendimentos de duas leis, de 1996 e 2017. Na interpretação exarada no parecer, nessas leis a Polícia Militar deve ser mantida como dona da apuração das mortes de civis por militares durante o serviço.

As medidas legais citadas:
“Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum”, traz o parágrafo segundo da lei 9299, de 1996, alterando trechos da legislação afeita aos policiais militares.
Trecho da lei 9299/1996
“Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto:
I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa;
II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou
III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais:
a) Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica;
b) Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999 ;
c) Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969 – Código de Processo Penal Militar; e
d) Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral. ”
A lei 13491, de 2017, foi editada poucos meses antes da intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro, pelo então presidente da República Michel Temer.

Esperando o STF
No parecer da PGE, é feita a ressalva de que o STF (Supremo Tribunal Federal), instância máxima do Judiciário, está apreciando a causa e por isso é melhor aguardar. Existem duas ações em andamento na corte superior, cujo resultado ainda não tem qualquer previsão. Uma é do Distrito Federal e a outra do Rio de Janeiro.
Em São Paulo, diante do saldo de mortos na operação policial das últimas duas semanas na Baixada Santista, foi esclarecido pelo governo do estado como fica a apuração.
Vão ser dois procedimentos. Um será na Polícia Militar, sob os aspectos da conduta das equipes militares estaduais, podendo ou não gerar punições dentro das regras da corporação. E na Polícia Civil, será conduzido um inquérito sobre as mortes decorrentes da ação policial, podendo redundar em indiciamento ou arquivamento se for constatado o uso legítimo da força.
Esse encaminhamento atende a regramento do TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo), de 2021. Um provimento foi editado barrando o envolvimento da Polícia Militar nas providências em locais de óbito durante o trabalho policial.
Nos fatos que envolvam morte de civil, com participação ou autoridade de policial militar, os policiais que primeiro atenderem a ocorrência deverão preservar o local até a chegada do Delegado de Polícia, que apreenderá todos objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais.
Artigo 1º do provimento 35/2021 da Corregedoria do TJSP
Existe a possibilidade, em Mato Grosso do Sul, de uma judicialização do tema, porém, essa vertente da polêmica sequer é comentada pelas fontes procuradas pela Capivara Criminal.
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