Por que mataram os irmãos Kerkhoff?
Operação Snow, contra esquema de tráfico em viaturas policiais, fornece indícios que podem ajudar a elucidar dupla execução de irmãos ocorrida nove meses atrás em Ponta Porã
Desencadeada pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado) no 26 de março de 2024, a operação Snow recolheu elementos capazes de iluminar os caminhos da investigação sobre um duplo homicídio ocorrido em Ponta Porã, cidade colada ao Paraguai.
Ocorridas nove meses atrás, as execuções dos irmãos Kerkhoff estão até o momento sem explicação, tampouco suspeitos identificados.

Pelas revelações trazidas, há indicativos de se tratar de mais duas mortes entrelaçadas à guerra do crime organizado na região, conhecida por ser porta de entrada para todo tipo de carga ilegal no Brasil e, por isso mesmo, território de disputa entre bandidos de alto calibre.
No dia 27 de junho do ano passado, os irmãos Valdemar Kerkhoff Junior, de 41 anos, e Eder Kerkhoff, de 39, foram assassinados com tiros calibre 9 mm e 5.56.
O atentado aconteceu quando estavam no lava-jato do qual eram donos, no bairro Parque Ipês, a distância relativamente pequena do solo paraguaio.
Pistola e fuzil
Era por volta das 17h30, perto do dia virar noite, quando os sicários chegaram em um Fiat Siena. Um desceu munido de pistola e o outro com arma longa, um fuzil, diante do tipo de munição deflagrada.
Valdemar e Eder morreram no local.
Nenhuma imagem de câmera de segurança foi descoberta pelas primeiras equipes de segurança a chegar por ali,

Gravações feitas com câmeras de celular mostram somente a circulação de curiosos diante dos corpos estendidos no chão.
Por causa dessa movimentação tão grande, a cena de morte não foi preservada, explicaram os peritos em seu relatório.

Foram apreendidos os três celulares dos dois irmãos, além de alguns objetos pertencentes a eles, como uma maleta de pistola Glock 9 mm.
Começou na 1ª Delegacia de Polícia Civil da cidade o andamento do inquérito, ouvindo parentes, funcionários, vizinhos e os policiais militares que chegaram primeiro no lava-jato.

Nada muito relevante saiu dessas oitivas.
Dois parentes dos homens mortos, um irmão e um primo, citaram o envolvimento de um deles, Valdemar, com atividades criminosas, no caso tráfico de drogas.
Em geral, os depoentes informaram contato esparso com as vítimas.
No mês de agosto de 2023, foi solicitado pelo delegado do caso, Lucas Calixto, a remessa do caderno investigatório para uma delegacia especializada.
“De acordo com os levantamentos preliminares, destacando-se as peculiaridades da região fronteiriça, demonstrando-se viável o prosseguimento das demais diligências investigativas por uma delegacia especializada da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul que poderá oferecer maior estrutura para finalização do inquérito policial e elucidação do delito.”
Ofício assinado pelo delegado Lucas Calixto
A única especilizada no estado é a DHPP (Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes de Homicídio e Proteção à Pessoa), em Campo Grande, para a qual foi enviada a peça.
Quando o inquérito ainda era tocado em Ponta Porã, os celulares recolhidos foram encaminhados para a perícia, a fim de extrair dados.
Para formular hipóteses sobre a dinâmica do crime, a providência é essencial pois ajuda a refazer os passos das vítimas e estabelecer uma lógica para o quebra-cabeça a ser estruturado.
Não adiantou muito. O ICHM (Instituto de Criminalística Hercílio Macellaro) relatou não ter conseguido capturar as informações armazenadas nos celulares, porque a tecnologia disponível não permite desbloquear os aparelhos.

O que a operação Snow revelou?
A esta altura da coluna, o enunciado no início, sobre a operação Snow, ainda não fez sentido. Pois agora fará.
Focada em debelar organização criminosa especializada no tráfico de cocaína, a ofensiva revelou que, 45 dias antes de os irmãos serem executados, um deles havia sido flagrado por câmeras de segurança em um ato criminoso, em Campo Grande.
Valdemar Kerkhoff Júnior foi filmado no dia 4 de maio de 2023 pelo circuito interno de uma casa no Jardim Pênfigo, alugada para festas.
Júnior estava junto com dois policiais civis, igualmente registrados nas imagens.
Anderson César dos Santos Gomes, 47 anos, e Hugo César Benites, 49 anos, lotados na 1ª Delegacia de Polícia Civil em Ponta Porã, foram presos em 26 de março, e são alvos de sindicância da Corregedoria-Geral.
Coube ao trio retirar de S-10 preta caracterizada da Polícia Civil em torno de 50 fardos contendo, conforme o Gaeco, cocaína e pasta base da mesma substância ilícita.
Antes disso, descobriu o monitoramento feito, Valdemar Kerkhoff Júnior dirigiu uma Fiat Toro de Ponta Porã a Campo Grande, servindo como “batedor” da viatura da Polícia Civil, onde estava o carregamento de mais de 300 quilos.
Há imagem do veículo andando próximo da S-10 policial.
A viatura teve registro de passagem pelo trajeto de Ponta Porã a Campo Grande por Dourados, Itaporã, Maracaju e Sidrolândia.
Veja no vídeo:
Dados obtidos da PRF (Polícia Rodoviária Federal) confirmaram o caminho feito. Em Sidrolândia, a viatura passa dois minutos antes da Fiat Toro.
No desenrolar das pesquisas do Gaeco, com a quebra de sigilos telemáticos, evidenciaram-se contatos de Júnior com integrantes da organização criminosa. A busca foi feita no conteúdo armazenado em nuvem ligado a dois e-mails em nome de Valdemar.
Entre esses contatos, um é com o homem indicado como chefe do esquema de tráfico investigado pela Snow.
“Se valia dos irmãos Valdemar Kerkhoff Júnior e Eder Kerkhoff, que foram assassinados no dia 27/06/2023 na cidade de Ponta Porã, não se sabendo ao certo por qual motivo, mas certamente relacionado à traficância (acerto de contas, queima de arquivo etc”
Petição do Gaeco à Justiça
Uma das provas da relação é a descoberta feita no repositório de imagens da nuvem dos e-mails de Júnior.
Trata-se de print de chamada de vídeo com o chefão do grupo. No diálogo, ele estaria repassando a Valdemar Kerkhof Júnior o contato de um dos policiais responsáveis pelo “frete seguro” da droga em veículo oficial da segurança pública estadual.
“Além de ser bastante próximo do líder do grupo, Valdemar Kerkhoff Junior mantinha relações com praticamente todos os integrantes da organização criminosa.”
Petição do Gaeco
São 21 pessoas, todas já denunciadas à Justiça, por organização criminosa, tráfico de drogas, corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
“Destacado” é como o Gaeco define o papel de Valdemar na estrutura criminosa.
“Inclusive foi o responsável por receber pessoalmente uma carga de mais de 360kg (trezentos e sessenta) quilos de cocaína em uma residência de Campo Grande”, traz documento a qual a coluna teve acesso.
A referência é ao entorpecente descarregado na casa de festas do Jardim Pênfigo, de Campo Grande, um mês e meio antes da execução dos irmãos.
“Valdemar Kerkhoff Júnior (“Júnior”), por sua vez, já cumpriu pena de 10 (dez) anos de reclusão pelo crime de tráfico de drogas (ação penal n. 0450236-34.2010.8.19.0001 da 33ª Vara Criminal/RJ), estava na residência no momento do descarregamento da droga, inclusive foi filmado na presença dos policiais civis, enquanto carregavam os invólucros com cocaína”.
Petição do Gaeco
No dia 4 de maio de 2023, ao notar a existência de uma câmera na residência, Júnior tenta empurrar o equipamento e chega a ter o rosto registrado.

Levantamentos feitos pela Capivara Criminal localizaram registros de prisão dele por tráfico no começo dos anos 2000, em Mato Grosso do Sul.
Além disso, em 2013 foi capturado no Rio de Janeiro e condenado por associação para o tráfico e tráfico. A pena foi de 23 anos de reclusão.
Em 2017, o condenado ganhou o direito ao regime semiaberto. Só estaria quite com a Justiça em 2033. Ou seja, pelas investigações do Gaeco, estava traficando enquanto cumpria liberdade condicional.
Quanto ao irmão, Eder Kerkhoff, a coluna identificou passagens por crime de trânsito, receptação e ameaça.
Entre elas, a mais recente é de 2015, no dia 21 de junho. Por volta das 21h30, Eder foi flagrado dirigindo com sinais de embriaguez.
No mesmo dia, o veículo guiado por ele bateu na traseira de um outro carro. Eder acabou preso, mesmo tendo se negado a fazer o teste de alcoolemia.
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Como está a investigação do duplo homicídio?
Procurada para saber em qual pé está o inquérito sobre o duplo homicídio, a DHPP informou estar trabalhando no caso, e que não pode dar detalhamento para não prejudicar as diligências.
Sobre os celulares apreendidos, o delegado titular da unidade, Carlos Delano, disse que está buscando meios para acessar o conteúdo.
Indagado se os dados revelados pela operação do Gaeco fornecem uma hipótese para as mortes, afirmou que todas as possibilidades estão sendo consideradas.