Prestes a voltar à legalidade, bingos foram reduto de bicheiro em MS
Em Campo Grande, casas de bingo funcionaram até 2007, em meio a suspeitas que envolviam até venda de sentenças
Se não houver uma reviravolta, o Brasil vai ressuscitar para a legalidade os bingos, além de tornar regular outras modalidades de jogos de azar, com a iminente aprovação de projeto em trâmite no Senado. Em Mato Grosso do Sul, a cultura de tentar a sorte com o bingo já foi febre, polêmica, matéria de polícia e justiça, além de problema social.

Ir jogar bingo lotava estádio e casas específicas, com milhares de pessoas com suas cartelas esperando o sorteio das bolinhas numeradas. Ganha quem completa a série antes. O prêmio, em geral, eram carros zero km, ou valores em dinheiro.
Depois, tudo se modernizou, com a chegada das máquinas de videobingo, os caça-níqueis, espalhadas por pontos como padarias, mercadinhos, bancas de revista e locais só para jogo.
Bastante popular, o “jogo de chance”- definição dada na proposta liberando novamente a atividade- protagonizou embates jurídicos e gerou preocupação com a saúde mental de pessoas viciadas nas apostas.
Esteve na mira de operações policiais, incluindo a suspeita de lavagem de dinheiro com os empreendimentos e venda de sentenças em benefício dos empresários do setor.
Banido do pais oficialmente em 1946, mas liberado pela Lei Zico, de 1993, e pela substitutiva Lei Pelé, de 1999, o “entretenimento” voltou a ser proibido em 2000, quando todas as licenças foram revogadas pela Lei Maguito. O prazo para fechamento era o fim de 2001.
Em Campo Grande, só em 2007 as portas se fecharam de fato, pela Polícia Federal. Até lá, nunca houve calmaria em torno do tema.
Em abril daquele ano, os três últimos bingos em atuação em Campo Grande foram fechados em operação da PF. Frequentadores assustados foram saindo dos lugares, muitos com receio de identificação.
Dentre essas pessoas, havia clientes assíduos, nem sempre por diversão, mas porque simplesmente não conseguia ficar sem as apostas.
Sobreviviam graças a liminar
Só se concretizou a desativação depois de cair liminar autorizando a permanência dos estabelecimentos em funcionamento. A decisão foi revogada um dia antes da “operação Têmis”, desenvolvida pela Polícia Federal, contra suspeitos de participar de esquema para venda de sentenças no TRF3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), responsável pelos processos de segundo grau de Mato Grosso do Sul e São Paulo.
Pelas investigações, a negociata beneficiava devedores da Receita Federal e donos de bingo, garantindo sua continuidade em funcionamento, mesmo tendo sido proibidos em 1999.
No final das contas, as suspeitas da operação “Têmis” foram sepultadas, diante da invalidação das escutas telefônicas.
Dinheiro no caixa estadual
Em Mato Grosso do Sul, os bingos tiveram relação próxima inclusive com o Poder Público.
No final da década de 1990, parte dos valores vindos da exploração do jogo de azar ia para os cofres estaduais. Quem recebia dinheiro auferido com a jogatina era a extinta Lotesul (Loteria de Mato Grosso do Sul), com autorização de portaria de âmbito estadual, editada no último ano do governo de Wilson Barbosa Martins (PMDB), e mantida na administração de Zeca do PT.
Para cada máquina instalada, R$ 51,00 eram pagos à empresa estatal mensalmente. Isso hoje, equivaleria a R$ 342,00 por equipamento.

Essa passagem da história do jogo em Mato Grosso do Sul está retratada em um dos mais ricos bancos de dados sobre o passado brasileiro, “Memórias Reveladas”, arquivo do falecido SNI (Serviço Nacional de Informações), tornado público 15 anos atrás.
Conteúdo de relatório confidencial à época cita o descompasso entre a proibição aos bingos eletrônicos, no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), e a exploração da atividade pelo governo estadual, a ponto de a Lotesul ignorar o veto federal.

“Muito embora tal revogação devesse implicar no recolhimento imediato das máquinas de videoloteria (caça-níqueis) em todo o país, em MATO GROSSO DO SUL tal fato não se verificou e as mesmas continuarão em operação.”
Relatório do SNI
“Ocorre que o Presidente da Loteria Estadual de MATO GROSSO DO SUL (LOTESUL), RONALDO FRANCO, entende que a medida federal só tem validade paia as máquinas de videobingo e videoloteria instaladas dentro das Casas de Bingo, fato esse não verificado no Estado pois tais equipamentos encontram-se instalados em bares, padarias, bancas de jornais, mercearias etc.”
Relatório do SNI
Até o final de novembro de 1999, a previsão dada era de instalação mais 700 máquinas caça-níqueis no Estado, “garantindo assim um faturamento mensal à Lotesul de R$ 35 mil”. Em valores corrigidos, seriam R$ 240 mil nos tempos atuais.
O documento do SNI relembra que o dinheiro dos videobingos chegava ao governo de Mato Grosso do Sul pelas mãos de nada mais, nada menos, que Jamil Name, conhecido durante décadas como chefe da exploração do jogo do bicho.
Com a liberação de outro tipo de jogo, Name foi o escolhido, por meio da Jana Produções e Eventos, para explorar os caça-níqueis em licitação.
Name e o então diretor da Lotesul tinham o mesmo posicionamento sobre a legalidade das máquinas de apostas, mesmo após a decisão vinda de Brasília.
“Tanto RONALDO FRANCO quanto o empresário JAMIL NAME proprietário da JANA PROMOÇÕES E EVENTOS, não consideram que as máquinas representem qualquer ilegalidade. FRANCO opina que a videoloteria e um jogo tal qual as loterias exploradas pelo Governo Federal, exemplificando a Mega-Sena a que pagou a apenas um apostador enquanto milhões jogaram”.
Relatório da Abin
“Insensato, arbitrário e violento”. Dessa forma, conforme o relatório do SNI, Jamil Name definiu o veto presidencial aos caça-níqueis.

“Afirmou possuir em sua empresa 25 pessoas que sobrevivem diretamente dos jogos e outros 120 locatários, indiretamente. Esclareceu aquele empresário que 20% do lucro com apostas ficam com esses últimos e os 80% restantes voltam à concessionária (JANA).”
Relatório da Abin
De acordo com a apuração dos arapongas do SNI, “Name ressaltou ter investido R$ 15 milhões nos equipamentos.”
Diante do risco de recolhimento das máquinas, ameaçava inclusive solicitar ressarcimento ao governo do estado, “caso a proibição seja estendida a nível estadual, além da multa prevista de R$ 3 milhões por rescisão contratual”.
No encerramento da peça informativa sigilosa, a fama de Jamil Name como um dos principais atores da ilegalidade no estado é citada.
“Muito embora JAMIL NAME fale em legalidade, o mesmo é um expressivo contraventor (banqueiro do jogo de bicho), além de ser tido como integrante e participante efetivo da gama de contrabandistas e traficantes ( armas/tóxicos) que operam no Estado, figurando como um de seus principais expoentes.”
Relatório da Abin

Jamil Name morreu em 2020, vítima da covid-19. Estava encarcerado no presídio federal de segurança máxima de Mossoró (RN), como chefe de milícia armada acusada de matar desafetos, no âmbito da operação Omertà, do Gaeco (Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado).
Ronaldo Franco é advogado e não tem mais qualquer relação com o governo do estado.
Procurado pela coluna, disse que a legalização dos bingos, agora em processo avançado, é algo inevitável.
“O jogo é uma realidade, sem regra publica e sem tributo algum. Com a legalização até os empregos serão formalizados.”
Ronaldo Franco
De fato, apreensões recentes de máquinas caça-níqueis comprovam a fala de Franco: proibidas por enquanto, as máquinas de apostas seguem sendo exploradas na clandestinidade.

Exemplo claro disso ocorreu em março de 2023, quando vinte máquinas foram encontradas no prédio onde já funcionou shopping popular, bem no Centro de Campo Grande, na rua Marechal Candido Mariano Rondon.
Em 2024, no mês passado, foram três apreensões do tipo em poucos dias.
Operação Xeque-Mate
Há muito tempo, por sinal, as ofensivas para coibir os esquemas clandestinos envolvendo caça-níqueis não prosperam. Em 2007, a operação Xeque-Mate teve números grandiosos, projeção nacional, porém morreu no Judiciário, sendo anulada.
Foram cerca de 80 pessoas implicadas.Jamil Name Filho, o “Jamilzinho”, esteve entre elas. Foi solto e atualmente é um homem condenado por chefiar milícia armada. Cumpre pena superior a 40 anos de prisão em Mossoró (RN).
A Xeque-Mate levou para a prisão o ex-deputado estadual Roberto Razuk, de Dourados. Da mesma forma de Jamilzinho, foi liberado pouco tempo depois. Razuk é pai do deputado estadual Neno Razuk (PL), réu na operação “Successione”, sob acusação de comandar investida criminosa para tomar o controle do jogo do bicho em Campo Grande.
No Paraná e em MS
Outro personagem de destaque, Nilton César Servo, já falecido, figurou entre os detidos pela Xeque-Mate, apontado como chefe de grupo responsável por importar ilegalmente peças para montar dispositivos eletrônicos da jogatina.
Tinha origem no Paraná, onde foi dono de casa de bingo, e com o tempo passou a atuar em Mato Grosso do Sul.

Servo se aventurou na política em diversas ocasiões. Quando assumiu vaga de deputado estadual no Paraná, mal chegou na Assembleia Legislativa e apresentou projeto para legalização do jogo do bicho. Foi suplente de deputado federal por Mato Grosso do Sul, e tentou ser prefeito em Campo Grande.
Morreu em 2015, no Rio de Janeiro, aos 59 anos.
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Loteria estadual, o retorno
A Lotesul deixou de existir em 2008, no governo de André Puccinelli (MDB), quando todo seu patrimônio foi repassado à Sefaz (Secretaria de Fazenda). Antes disso, em 2006, o STF (Supremo Tribunal Federal) declarou como ilegais as loterias estaduais. Só o governo federal poderia manter iniciativas do tipo, concluíram os ministros.
Em 2020, o posicionamento do Supremo teve mudança. Ao julgar ações questionando a exclusividade federal na área, o entendimento foi de que não há essa previsão na Constituição Federal.
A partir disso, o governo de Reinaldo Azambuja (PSDB) propôs, e conseguiu aprovar, lei recriando o sistema estadual de loterias, sob guarda da Sefaz.
Em 2022, chegou a ser aberto edital de chamamento para credenciamento de operadores da loteria. Não vingou, porque uma empresa do Paraná entrou na Justiça alegando descumprimento da Lei de Licitações.
O edital foi derrubado pela Justiça. Em decisão recente, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) manteve a anulação. Ainda cabe recurso pelo governo do estado. A Secretaria de Fazenda foi procurada para saber qual vai ser o encaminhamento em relação ao assunto, porém não houve resposta.
Projeto no Congresso
Proposta de lei em andamento no Congresso Nacional desde a década de 1990 avançou para a apreciação do Senado, onde passou pelo crivo da CCJR (Comissão de Constituição, Justiça e Redação), análise considerada essencial a qualquer proposição no legislativo.
Pelo texto, passam a ser legais o jogo de bingo, as apostas on-line, os lances em corrida de cavalos e o jogo do bicho, atividade considerada contravenção penal e, rotineiramente, apontada como um apêndice na estrutura de organizações criminosas.
O que seria liberado?
- Jogos de cassino;
- Jogo do bicho;
- Jogos de bingo;
- Jogos de videobingo;
- Jogos on-line;
- Apostas em corridas de cavalo.
Não há prazo para a votação definitiva. O presidente Lula, ao ser perguntado, se disse tendente a sancionar a lei, caso seja aprovada.