“Sintonia dos Gravatas”: servidor da Justiça preso acordava às 5h à espera da polícia
Comissão de juízes recomenda demissão de analista judiciário que “alugou” senha para a chamada "Sintonia dos Gravatas"
“Eu acordo 5 horas da manhã e fico olhando na janela se a polícia num vai bater aqui em casa, porque todo dia eu acho que eu vou ser preso (…) fico até 7 e pouco ali na janela, aí que eu falo a polícia num vai vir mais aqui não, aí eu durmo.”
Quem literalmente perdeu o sono foi o analista judiciário Rodrigo Pereira da Silva, de 41 anos, preso na operação “Courrier” depois da descoberta de que “alugava” a senha de acesso a sistemas restritos para advogado integrante da chamada “Sintonia dos Gravatas”. Esse grupo é formado por profissionais do Direito que, conforme as apurações, são integrantes de facção criminosa que domina a massa carcerária em Mato Grosso do Sul.

Rodrigo fez a confidência em tom de agonia a uma advogada, conforme investigação do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado). Não demorou muito para o pesadelo da insônia se tornar realidade. Na manhã do dia 25 de março, ele foi preso e assim continua. Há mais motivos para o servidor se preocupar: o risco é grande de perder o cargo público.
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Comissão formada por três juízes recomendou ao TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) a demissão do analista judiciário. O processo administrativo contra Silva foi aberto no passado, logo depois da descoberta de que o advogado Bruno Ghizzi, de 30 anos, também preso na operação Courrier, usou a senha do servidor para consultar o prontuário de delegado de Polícia Civil, horas depois de depoimento dado pelo policial em audiência derivada da operação Omertà, de combate a milícias armadas.
Detalhes do procedimento obtidos pelo Primeira Página revelam que Rodrigo Silva tentou ao máximo atrasar o andamento da medida que pode levá-lo a perder o cargo público de mais de duas décadas.

Sem condições
Antes disso, durante os passos do procedimento administrativo, primeiro o funcionário público alegou incapacidade psicológica de acompanhar os andamentos. Depois, apresentou atestado médico de problemas no joelho. Também houve dificuldade da comissão processante de localizá-lo para intimar de fases do procedimento, entre elas a data de depoimento.
São muitas as descobertas feitas a partir dos testemunhos colhidos sobre as irregularidades cometidas. Foram ouvidos o magistrado titular da 1ª Vara de Execução Penal, onde Rodrigo Silva era o chefe do cartório, colegas de trabalho, e ainda um outro juiz que atuou na seção, assim como o advogado que teve acesso à senha.
Fazia mais de ano que Bruno Ghizzi estava com esse acesso. Primeiro tanto ele quanto o “amigo” tentaram emplacar a versão de que o código havia sido pego por estar exposto em um post-it no computador do servidor. Só depois assumiram que havia sido entregue de forma voluntária.
O servidor havia fornecido a senha de dois sistemas que guardam informações da segurança pública estadual. No Sigo, é possível obter dados pessoais, como endereço da pessoa e identificação de seus familiares. No Siapen, o outro banco de dados ao qual o advogado teve acesso, estão disponíveis dados relacionados a pessoas presas.
No processo administrativo, outra irregularidade demonstrada é a criação de uma pasta no sistema do Poder Judiciário com dados de 9 presos, todos ligados a facção criminosa e que foram transferidos para presídios federais, por serem considerados de alta influência negativa sobre a massa carcerária, com riscos para o público externo por comandar ações violentas de dentro das prisões.
Esses arquivos apareceram mesmo depois que o analista judiciário já estava afastado da função.
A suspeita é de vazamento das decisões sobre inclusões de detentos no sistema prisional, normalmente tomadas em sigilo. Nem a defesa é comunicada antecipadamente para que a transferência seja feita em segurança.
Um dos depoentes, diretor do presídio considerado o mais rígido de Mato Grosso do Sul hoje, o de regime fechado da Gameleira, mais conhecido como “Supermáxima”, contou que os detentos sabiam antecipadamente que iriam mudar de unidade prisional.
Erro grave
Para os três juízes responsáveis pela análise dos fatos, Rodrigo cometeu faltas graves, que são passíveis de demissão. Agora, quem vai decidir é Conselho Superior da Magistratura.
Na defesa apresentada pelo servidor nesse processo administrativo, ele tentou minimizar a gravidade do repasse das senhas, alegando que advogados têm acesso ao Sigo autorizado.
Isso foi rebatido com a informação de que o acesso ao Sigo permitido não fornece informações sigilosas como aquele de um servidor, principalmente na função de Rodrigo, que manejava processos de presos de alta periculosidade.
Na análise da comissão, o servidor, em linguagem leiga, traiu as regras básicas de quem é investido em um cargo público de uma área sensível. No frigir dos ovos, o entendimento é de que as atitudes colocaram em risco a vida de pessoas.