Os machos alfas espanhóis e o psicopata americano
Uma série de comédia e um filme de suspense sanguinolento falam sobre as disputas dentro de grupos sociais; medo e risos para discutir algo que já devia estar superado
Ok, essa coluna é para falar do sobrenatural, de terror… mas confesso que estou tão viciado numa série que resolvi pedir licença à minha consciência – e, agora, aos leitores – para falar sobre Machos Alfa, com duas temporadas disponíveis na Netflix.
A produção espanhola – mais uma! – acompanha quatro amigos héteros que um dia resolvem participar de um curso sobre desconstrução da masculinidade.
Cada episódio garante uma série de reflexões e muitas risadas.
Santi é o marido traído que mora com a filha e, para esquecer a esposa, entra num ritual maluco inventado pela adolescente. Ele tem de transar com 10 mulheres diferentes para que possa ficar livre do amor não correspondido. E é a menina que agenda os encontros do pai no Tinder.
Pedro é o típico garanhão. Produtor de programas numa estação televisiva, ele acaba demitido e substituído por uma mulher. Hétero top ao extremo, ele sai chutando tudo com a certeza equivocada que logo arrumará um novo emprego numa empresa menos ingrata que a anterior.

A forma como conduz essa crise é totalmente utópica. Adepto da convicção de que o homem é o arrimo da família e não demonstra fraqueza, ele faz de tudo para minimizar o trabalho crescente da noiva como influencer digital. Claro! Como uma mulher vai ganhar mais que um homem?!!
O quarteto ainda tem Luis, que com a esposa Esther, garante as cenas mais engraçadas da série. Um casal de meia idade comum com dois filhos. Ele, policial de trânsito. Ela, instrutora de auto escola. Com o casamento em ponto morto, eles decidem apimentar a relação. É uma sucessão de desastres.
Até que a infidelidade entra na vida dos dois para mexer com o mundinho sem graça.
Por fim, Raul. O garanhão. Pega todo mundo. Até a esposa do sócio do restaurante que tem. Mas quando a esposa, a bela Luz, propõe uma relação aberta, ele pira. Como assim???!!!
A primeira temporada foca no tal curso de desconstrução da masculinidade. E na fragilidade que envolve os “machos” apesar de se acharem os reis do reino humano.
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Pedro, no entanto, não consegue se encaixar no perfil desejado pelo instrutor Patrick e passa a idealizar um curso com conteúdo oposto, justamente para valorizar os institutos masculinos primitivos.
A segunda temporada é ainda melhor que a primeira. E traz mais uma série de situações envolvendo os protagonistas. O ciúme de Esther com a nova colega de trabalho de Luís tem uma cena hilária que envolve um chuveiro e uma touca de cabelo.
Raul, o pegador, começa a se envolver com os amigos de seu novo sócio, que é gay assumido. Mais situações surpreendentes e de encher os olhos de lágrimas. Como a que ele convida os amigos para um clube especial onde eles jamais pensariam em ir na vida.
E o roteiro, inteligente, aproveita para ligar uma situação à outra e esticar a piada por mais tempo.
Vale demais. É como se cada um de nós fizesse, junto com os protagonistas, o curso mais do que necessário em dias atuais.
Aliás, o próprio criador da expressão “Macho Alfa” critica a forma como ela acabou sendo usada. Em entrevista publicada pelo G1 em julho do ano passado, o primatologista holandês Frans de Waal, desabafou:
“Toda essa bobagem de mostrar a todo mundo quem manda e quem fica com as garotas e toda essa bobagem que está rolando agora está errada, na minha opinião. O termo foi distorcido na ideia de um macho que muitas vezes deixa claro de forma agressiva quem manda na política, no cargo ou nos relacionamentos.”
O conceito ganhou alcance global quando ele escreveu o livro A Política do Chimpanzé. Na obra, ele usava a denominação para dizer que, entre os macacos, há sempre um macho e uma fêmea alfas. São eles os responsáveis pela harmonia do grupo. Não são ditadores. E, muito além da necessidade de força física, precisam ter habilidade política para agradar a todos e não ser substituído pelo grupo.
“Entre os chimpanzés, por exemplo, muitos dos machos alfa protegem os oprimidos, interrompem as brigas, têm muita empatia, mantêm o grupo unido e contam com algum senso de responsabilidade, portanto não são ditatoriais. Às vezes existem tiranos, mas na maioria das vezes são bons líderes.”
Mas os políticos em Washington começaram a usar o termo para um tipo de homem forte. No entanto, segundo de Waal, o termo acabou sendo adotado por políticos e empresários para determinar simplesmente o humano mais forte para sobreviver à selva de pedra das grandes cidades.
E é aí que voltamos para a raiz desta coluna.
Se a série Machos Alfa trata o tema com humor, Psicopata Americano escancara sangue e loucura nas mãos de Christian Bale (antes de se tornar o melhor Batman do cinema).
Se Machos Alfa trata o tema com ênfase na “briga” entre homens e mulheres (a cena de Pedro apostando corrida com uma desconhecida na rua é muito marcante sobre esse ponto), Psicopata Americano é a pura luta por ser o melhor do grupo.
O filme é do ano 2000. Bale vive Patrick Bateman (quase Batman de novo), um yuppie orgulhoso de seu estilo de vida luxuoso e emprego na Wall Street. Um homem que passa horas cuidando do corpo e que confessa ser incapaz de sentir qualquer emoção.
Ele vive num cenário de extrema competição e se sente o macho com necessidade de eliminar qualquer um que tente se sobressair a ele.
Bateman chega ao cúmulo de jurar de morte um colega só por ter cartões de visita mais ostentosos que o dele. Ou por conseguir, com agilidade, reservas em restaurantes disputadíssimos.
Pobre Paul Allen (Jared Leto)… o empresário de sucesso é uma das vítimas do machado afiado do maníaco rico.
Como disse o site Adoro Cinema na sinopse da obra: “Protegido pela conformidade, privilégio e riqueza, Bateman também um serial killer, que vaga livremente e sem receios em busca de uma nova vítima. Seus impulsos assassinos são abastecidos por um zeloso materialismo e uma inveja torturante quando ele encontra alguém que possui mais do que ele.”
Um ser vazio que trata mulheres apenas como objetos. Chega a dizer para a secretária usar roupas mais bonitas e salto alto; porque ele gosta de mulheres de salto alto.
O filme é recheado de diálogos que podem parecer monótonos, mas basta prestar a atenção pra conhecer um mundo horrível onde a ganância e a vaidade sãos os únicos objetivos de vida.
Se as palavras dos ricos arrogantes causam asco, a trilha sonora é sensacional. Vai de Huey Lewis and the News, passando por Phill Collins e encontrando Whitney Houston. Tocos tocados antes dos acessos de fúria do malucão. Contar as histórias dos cantores e de suas principais músicas servem como aquecimento para a maratona de violência.
Num desses acessos, ele corre pelado com uma serra elétrica ligada para matar uma acompanhante.
É o puro suco de uma geração. Retrato do mundo de quase meio século atrás.
Evoluímos?
Sei não…
Seja Bateman, Pedro, Luis, Esther, Raul ou Luz.
Continuamos tendo um rosto para a sociedade e outro para nós mesmos.
E discutindo a existência de machos alfas depois de tanto tempo.
Podemos rir com isso, sentir medo disso ou simplesmente passar a agir como o dono dessa expressão espera:
“Acho que devemos voltar ao significado original, que é o do homem, e muitas vezes da mulher, de nível superior, que pode ser um líder muito responsável, alguém que mantém o grupo unido e garante a paz.”
Esta coluna encerra com mais essas palavras de Frans de Waal.
Que elas não sejam distorcidas mais uma vez.