Paraíso Perdido é um achado em tempos de nova caça às bruxas
Série de documentários da HBO mostra a luta pela liberdade de 3 adolescentes acusados de matar crianças em ritual satânico
André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV.
Traz, na vida, uma bagagem incrível de conhecimento que inclui anos como correspondente internacional em Los Angeles.
E foi através do canal de Barcinski no Youtube que descobri a trilogia Paraíso Perdido, que o jornalista chama de melhor série de true crime da história. Com a indicação na mente, maratonei os três episódios num único fim de semana.
Era impossível deixar de pensar no que aconteceria nos próximos passos dessa história real passada nos Estados Unidos. Em 1993, a polícia da cidade de West Menphis, no Arkansas, encontrou os corpos de três meninos de 8 anos de idade. Stevie Branch, Michael Moore e Christopher Byers estavam nus com diversas marcas de violência no corpo. Um deles tinha sido emasculado (parte do pênis arrancada).
Três adolescentes foram presos e acusados pelo crime. Não havia nenhuma marca de sangue, esperma, fios de cabelo. Nada na cena do crime que os incriminasse.

Mas Damien Echols, de 18 anos, Jason Baldwin, de 16, e Jessie Misskelley Jr., de 17, vestiam roupas pretas, tinham cabelos compridos e adoravam ouvir heavy metal. Metallica era a banda preferida e faz parte da trilha sonora do documentário.
Essas características foram ligadas pela polícia e pela comunidade conservadora da cidadezinha como elementos típicos de adoradores do diabo. E o jeito que os corpos foram encontrados, claro, só podia ser fruto de um ritual satânico.
Os julgamentos de três adolescentes por questões religiosas chamaram a atenção de Joe Berlinger e Bruce Sinofsky, que decidiram produzir e dirigir Paradise Lost: The Child Murders at Robin Hood Hills, lançado em 1996.
Eles conseguiram autorização para gravar todo o julgamento e tiveram acesso aos envolvidos na história. O documentário é recheado de entrevistas com os investigadores, com os suspeitos e com os parentes das vítimas. E causou um furor nos Estados Unidos.
Conforme os realizadores captavam o material, dúvidas da inocência dos presos iam surgindo.
Toda a investigação era baseada na “confissão” de um dos réus. Jessie Miskelley Jr, disse que viu Damien e Jason matarem os garotos. E ele, próprio, segurou uma das vítimas, impedindo que ela fugisse. Damien, ainda, teria estuprado os meninos.

O problema é que Miskelley tem uma grande limitação intelectual e foi interrogado por 12 horas. No entanto, a polícia só apresentou os 48 minutos finais da gravação, justamente quando o menino, cansado, disse o que os investigadores queriam.
Ele foi o primeiro a ser julgado. E condenado a prisão perpétua. Quando os outros dois sentaram, juntos, nos bancos dos réus, meses depois, um especialista em demonologia sem qualquer tipo de formação foi apresentado como testemunha crucial para provar que desenhos no caderno de Damien eram sinais demoníacos.
O rapaz ainda teve o azar de ter o nome do filho do demônio no filme A Profecia – sério, os promotores levaram isso em consideração no tribunal . Damien foi sentenciado à pena de morte e Jason à prisão perpétua.
Quando a HBO lançou Paraíso Perdido, dois anos depois, um grupo de pessoas se reuniu e lançou um movimento nacional pedindo a liberdade para os 3 de Memphis. Eles arrecadaram fundos para as apelações dos condenados e tentavam que um novo julgamento fosse feito para avaliar a falta de provas e corrigir o que achavam ser erros e vícios do anterior.
Esta iniciativa deu origem a um segundo documentário no ano 2000. Paraíso Perdido 2: Revelações esmiuça o trabalho do grupo que começa a apontar outros suspeitos pelo crime.
Um deles é o padrasto de uma das vítimas. Um gigante ruivo de mais de dois metros de altura e todo performático em frente às câmeras.
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Byers é um fanático religioso que canta durante o velório das crianças, queima sepulturas fictícias dos assassinos e cita passagens da Bíblia como um louco enfurecido. É uma figura típica de filmes de ficção.
Ele também foi investigado pela morte da esposa, dois anos depois do assassinato do filho deles, e respondeu por furto de objetos de um vizinho.
Não há como não se envolver nessa história. Três crianças barbaramente assassinadas, três adolescentes que podem ter sido condenados pela ineficácia da polícia em encontrar os verdadeiros culpados e, principalmente, o cenário típico de uma caça às bruxas aos moldes de Salem.
O medo alimentado pela fé é muito perigoso. E todos em West Menphis temiam ao demônio e qualquer um que pudesse ser confundido com um de seus adoradores tinha de ser queimado. O sistema judicial norte-americano foi o principal alvo destes documentários à época de seus lançamentos.
Mas, hoje, eles valem muito para refletirmos sobre os limites da interferência religiosa na vida.
Vale tudo em nome de Deus? Somos, mesmo, seus representantes na Terra para julgar, torturar, matar ou mesmo excluir alguém da sociedade só porque não pactua com os dogmas que eu ou minha fé entenda ser os verdadeiros?
Basta alguém apontar um dedo e insinuar, sem provas – olá, redes sociais! – de que alguém é culpado pelos problemas do mundo – olá, homossexuais, olá vítimas grávidas de estupro, olá imigrantes! — para que haja um julgamento público sem comprovação de que realmente levam culpa em algo.
De 1993 até 2025, são 32 anos. Evoluímos algo em relação ao que aconteceu em West Memphis? E a cidade norte-americana, conseguiu evoluir e reconsiderar a possibilidade de suas autoridades terem errado no julgamento dos três?
Apesar dos documentários se basearem em fatos, eles são pouco conhecidos e vale muito a pena não ter muito mais informação para que se tenha o prazer de acompanhar essa luta até o fim. Não darei spoiler, mas adianto que o desfecho é surpreendente.
De tirar o fôlego, revirar o estômago. A conclusão é apresentada num terceiro e último episódio, Paraíso Perdido 3: Purgatório, lançado em 2011. Ele mostra o crescente movimento pela liberdade dos três condenados e a corrida contra o tempo para que Damien não seja executado.
Nomes como Johnny Depp e o líder do Pearl Jam, Eddie Vedder, começam a falar publicamente sobre a necessidade de um novo julgamento. Especialistas se unem aos três suspeitos para analisar as evidências e colocar mais um padrasto como suspeito.
Um que era violento com o filho, que não tinha álibi para o dia do crime e que nem sequer foi ouvido pelos policiais na época. Afinal, ele tinha todos esses defeitos, mas não vestia preto ou ouvia heavy metal.
Em tempos em que estamos voltando a ver a influência religiosa crescer na política, com novos personagens surgindo como “bruxas”, Paraíso Perdido é quase uma obrigação.
Para quem não quer ser manipulado por líderes que dizem saber a Bíblia de cor, mas que não aprenderam que só deve atirar a primeira pedra quem nunca pecou.
Apesar do título, quem parece perdido não é o Paraíso e, sim, quem tá louco para entrar nele por meio de atalhos.